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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

5 de abril de 2011

Não à Alienação

Desprezo

É quase um truísmo, mas ainda assim vale repetir mais uma vez: um dos problemas mais sérios da alienação é que a maioria das pessoas alienadas não têm consciência de sê-lo. Desse modo, todos os esforços no sentido de fazê-las perceber sua condição merecem apoio e a mais ampla divulgação possível.

Um bom exemplo é o livro Olhar Sobre o Olhar que Olha1, de Izabel Petraglia. Outro é Globalisation: Gandhi and Swadeshi2, de Vandana Shiva. No caso de Petraglia, trata-se da primeira obra brasileira a mostrar com clareza as diferenças entre os modos de pensar cartesiano (fragmentador), "holístico" (totalizador) e complexo (plural). Longe de se perder em intermináveis filigranas teóricas, esse trabalho tem importantes repercussões práticas. Revela-nos, por exemplo, como os modelos de pensamento cartesiano e "holístico", cada qual à sua maneira, dificultam-nos a compreensão da complexidade, isto é, da realidade. Mostra-nos que quando adotados de modo isolado (ou um ou o outro) eles nos mantêm distanciados — alienados, portanto — daquilo que Husserl chamou de "o mundo da vida".

O texto de Shiva — do qual falarei com detalhes em outro ensaio — trata de liberdade e economia, e pergunta o que é liberdade econômica e quem a tem. Examina, entre outras coisas, um fato bem conhecido: hoje, no plano mundial, cada vez mais as grandes empresas ditam as políticas econômicas, alienando dessa função os Estados nacionais. Ou seja, a economia global tende a alienar as economias locais.

Petraglia mostra que o desligamento da experiência cotidiana pode trazer repercussões negativas em termos de responsabilidade social. Esse fato produziu e continua a produzir problemas éticos e práticos, os quais são tanto mais profundos quanto menos percebidos e compreendidos. Por um lado, o modelo cartesiano, que tudo fragmenta e privilegia as partes em separado, desembocou no que hoje conhecemos como "globalização", basicamente representada pela "nova economia" do neoliberalismo. Suas faces não alardeadas, porém qualitativa e quantativamente óbvias, são, como todos sabem, a exacerbação do individualismo, a falta de solidariedade e a exclusão social. De outra parte, a proposta "holística" (em princípio justificável) de privilegiar a totalidade, não deixa de ser também um reducionismo, que em sua versão mais difundida acabou se transformando numa espécie de escapismo espiritualóide.

A intenção "holística" é boa, mas seus resultados práticos nem tanto. Em sua variante remanescente da chamada New Age, esse modelo mental é problemático, pois ao acreditar nele as pessoas tendem a abrir mão de suas capacidades de ação pessoal e interpessoal. Ao assumir essa postura, passam a crer numa totalidade que cuida de tudo e a confiar em forças "transcendentais", supostamente representadas por pessoas ditas "iluminadas", guias ou gurus. Tais "mestres" pretensamente devem orientá-las e decidir por elas, agora transformadas em ondas dóceis e padronizadas de um oceano de conformismo, credulidade e inconsciência. Existem até mesmo "receitas" — listas detalhadas das qualidades que devem ter os "iluminados".

De todo modo, a tendência de ficar sob o império de diretivas unilateralizantes — sejam elas cartesianas ou "holísticas" — pode ter desdobramentos indesejáveis, como logo veremos. As pessoas são levadas a um estreitameno de percepção e compreensão que tende a incapacitá-las para práxis eficazes e ações políticas significativas, inclusive em relação a atividades comunitárias e educacionais. Para que esse estado de coisas persista e se aprofunde, tudo é feito para que os indivíduos continuem condicionados a pensar de um modo único: é necessário torná-los prisioneiros de um padrão fixo de pensamento.

Essa cristalização mental gera divisões e cria condições para o aparecimento de conflitos de toda sorte. É o que se chama de "efeito paradigma"3, o qual pode ser assim enunciado: se os referenciais de pensamento de dois indivíduos ou grupos em relação a um dado assunto forem diferentes, o que é perceptível para um é imperceptível para o outro. Isto é: cada um tende a acreditar que sua visão de mundo é a única correta, o que diminui — quando não elimina — as possibilidades de diálogo e portanto de criação de novas perspectivas.

Como todos sabem, essa é base das ortodoxias, dos conservadorismos, da intolerância, dos corporativismos — em suma, dos fundamentalismos. Talvez em nenhum outro momento da história humana a necessidade de compreender e aprender a lidar com esse fenômeno seja tão vital como nos dias atuais. Por outro lado, talvez em nenhum outro instante dessa mesma história tal compreensão se mostre tão difícil, dado que a mente de nossa cultura está cada vez mais fragmentada e prisioneira do unilateralismo, do exclusivismo e, portanto, do isolacionismo. Sem a superação desse bloqueio, será cada vez mais difícil imaginar e pôr em prática ações que traduzam o que Nelson Mandela chamou de "afirmação de nossa humanidade comum" e "realização dos valores humanos".4

Tal circunstância nos leva a falar, ainda que de modo breve, sobre a questão dos direitos humanos e sua validade sob regimes políticos e ordens econômicas de natureza conservadora, baseados em exclusivismos e unilateralismos. A esse respeito, em recente artigo e em outro contexto5, o jornalista Janio de Freitas observa que é hora de reavaliar esses direitos e, ao longo dessa apreciação, procurar livrá-los de demagogias e diversionismos. Acrescento que também é preciso procurar meios de evitar que eles sejam reduzidos à condição de simples ferramentas do utilitarismo e do propagandismo de nossa cultura. "Há direitos cassando direitos, quando não a vida", diz Freitas. Ao que replico lembrando os casos em que "direitos" autoproclamados vêm sendo praticados, amplamente divulgados e traduzidos em expressões como "bombas inteligentes", "guerra cirúrgica" ou "bombardeios humanitários".

Como se tudo isso ainda não bastasse, surge agora nada mais nada menos que a idéia de "imperialismo democrático", ou seja, a democracia imposta. Essa expressão, aliás, define com clareza a espécie de processo democrático que os colonizadores querem para os colonizados. A lógica é curta e grossa e poderia ser definida como algo assim: se há "bombardeios humanitários", por que não impor também "imperialismos democráticos"? Essa é uma das alternativas propostas pelo sr. Stanley Kurtz em artigo na Policy Review Online (publicação da Hoover Foundation, conhecido think tank do conservadorismo americano), em relação à ocupação americana no Iraque. Nesse texto, ele afirma que a argumentação em favor de uma "aventura de imperialismo democrático é também forte".6

Segundo o sr. Kurtz, a longo prazo esse tipo de imperialismo "pode ser nossa [dos EUA] melhor garantia contra a combinação crescente e mortal do terrorismo com armas de destruição em massa".7 Em sua opinião, a implantação de um regime assim deve se concentrar, entre outras coisas, "na formação de uma classe modernizadora e liberal por meio da educação".8 O modelo clássico, portanto: doutrinar para controlar, seja diretamente ou mediante testas de ferro, que, como mostram os registros históricos, em geral são membros da própria elite colonizada.

Por trás de todos esses fenômenos está o condicionamento mental (imprinting) de sempre: o modelo de pensamento fragmentador do "ou nós ou eles", que distorce algumas das noções mais fundamentais da condição humana, como alteridade, natureza, diversidade, convivência integrada e, claro, a democracia. E, o que é pior, a experiência mostra que quanto mais esse condicionamento se prolonga menos somos capazes de sequer perceber que ele existe e como atua. É um modo de pensar que exclui a tudo mais, um padrão autojustificado e justificado por todos e por tudo — em especial por interesses econômicos desde sempre bem conhecidos.

Tudo isso visto, não é difícil concluir que o principal obstáculo para a mudança do sistema de pensamento fragmentador prevalente em nossa cultura é o modelo econômico hoje dominante. Chega-se a essa conclusão por meio de um raciocínio simples: a) a educação é financiada pela economia; b) em épocas menos autoritárias que a atual, havia um consenso de que política e economia se determinavam mutuamente, mas em geral esta era mais freqüentemente determinada por aquela; c) nos tempos atuais, porém, é obvio que é a economia que determina a política — ela determina quase tudo, aliás.

É claro que a mudança do modo de pensar hegemônico por meio da educação (que de resto é um empreendimento de longo, longuíssimo prazo) teria de ser apoiada pelo modelo econômico atual. E este, como vimos, privilegia a divisão, o exclusivismo, a unilateralilade de políticas e ações. Enfim, pouco ou nada tem a ver com inclusão, participação, pluralização de conhecimentos e respeito à diversidade.

Respeitadas as exceções de praxe, a observação mostra que a educação atual é um empreendimento eminentemente financeiro: nos últimos tempos, vem sendo cada vez mais tratada como um business. O exemplo mais patente é o esvaziamento da educação pública, que não necessariamente tem sido seguido de um aumento de qualidade (mas que com certeza tem produzido notáveis progressos quantitativos em termos financeiros) da educação privada. Além do mais, o predomínio acachapante do conhecimento tecnocientífico em prejuízo das humanidades tende a mecanizar e a embrutecer a mente das pessoas, tolhendo-lhes a experiência e a expressão dos sentimentos, emoções e subjetividade, e com eles os valores e as posturas éticas correspondentes. Os resultados aí estão, à vista de todos.

Como conseqüência desse embotamento de percepção, corrompem-se, decaem e em certos casos até mesmo desaparecem as palavras que possibilitam que pensemos e falemos sobre outros modos de ver a nós próprios, os outros e o mundo; que permitem que projetemos alternativas menos limitadas de existência; enfim, que imaginemos modos de vida que nos livrem da dualidade "luta ou fuga", sob cujo tacão tosco e primitivo parece que estamos cada vez mais condenados a viver.

Este ensaio começou e terminará falando de livros, mas convém ressaltar que é em relação à leitura e à compreensão de textos que surgem alguns dos maiores problemas ligados à alienação. O vocabulário das pessoas se reduziu de tal forma que muitas delas se tornaram virtualmente impermeáveis a tudo aquilo que possa fazê-las mudar de idéias e valores. É cada vez mais comum encontrar indivíduos (entre eles, não poucos com formação universitária) que não conseguem compreender conversações e escritos que tratem de temas fora de sua formação técnica/profissional. Ainda mais preocupante é o fato de que, no caso dos textos — por mais simples que sejam —, essa incapacidade é especialmente pronunciada. O argumento autodefensivo mais freqüente é o de que "a linguagem é difícil".

Em suma, a limitação do vocabulário limita a compreensão e com isso limita também a percepção da existência dessa limitação. Um mundo percebido e construído por meio de uma linguagem limitada é um mundo inevitavelmente limitado, um ambiente do qual nos alienamos. Trata-se de uma situação espantosa — que no entanto para muitos não só é muito natural como também desejável, pois para eles a única coisa que interessa são "os resultados concretos", ou seja, financeiros.

O que o livro de Petraglia mostra, algumas vezes de modo crítico e irônico — mas nem por isso menos claro —, é que o pensamento complexo é uma visão plural, multidimensional, que busca a interação constante entre as partes e o todo e visa a tornar permeáveis as fronteiras entre as disciplinas do conhecimento. Revela que aprender a pensar desse modo pode nos levar a compreender e aceitar a diversidade (biológica, cultural, étnica e de idéias). Mostra-nos ainda como uma compreensão ampliada da complexidade (isto é, do mundo real) permite que resistamos aos apelos da alienação; e como dessa maneira podemos nos tornar mais capazes de ampliar a consciência sem renunciar à individualidade (mas atenuando o individualismo) e, em conseqüência, buscar a solidariedade.

Para quem pretende aprender a lidar com o diálogo que pode e deve existir entre as dimensões local e global do cotidiano, e por meio delas desenvolver e consolidar posições de solidariedade, responsabilidade social e auto-sustentabilidade, a leitura de textos como Olhar Sobre o Olhar que Olha e Globalisation: Gandhi and Swadeshi são passos à frente.

Notas
1. PETRAGLIA, Izabel. Olhar Sobre o Olhar que Olha: Complexidade, Holística e Educação. Petrópolis: Vozes, 2001.
2. SHIVA, Vandana. Globalisation: Gandhi and Swadeshi. New Dehli: Research Foundation for Science, Technology and Ecology, s.d.
3. VASCONCELLOS, Maria J. E. de. Pensamento Sistêmico: O Novo Paradigma da Ciência. Campinas (São paulo): Papirus, 2002.
4. Em SAID, Edward. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 107.
5. FREITAS, Janio de. "Direitos Desumanos". Folha de S. Paulo, 06.04.2003.
6. KURTZ, Stanley. "Democratic Imperialism: A Blueprint". Policy Review Online, abril & maio, 2003. (www.policyreview.org).
7. Id., ibid.
8. Id., ibid.

( © Humberto Mariotti, abril, 2003 )

HUMBERTO MARIOTTI é médico, escritor (ensaio, romance, conto) e professor da Business School São Paulo. Coordena o Grupo de Estudos Contemporâneos (Complexidade, Pensamento Sistêmico e Cultura) da Associação Palas Athena — Centro de Estudos Filosóficos, em São Paulo.

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