Aviso aos navegantes

Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

2 de abril de 2012

Quando 31 de março foi 1º de abril


Por volta das quatro da madrugada as tropas do exército, com tanques, armamentos, caminhões lotados de soldados, jipes, caminhonetes, canhões e todo o aparato de guerra, partiram de Minas com direção ao Rio. Era o dia 1º de abril e um golpe era iniciado contra o governo eleito de João Goulart, golpe gestado desde a época de Getúlio, inclusive com um “manifesto dos coronéis”, e abortado –ou adiado – pelo suicídio estratégico do próprio Getúlio. Dez anos depois, quando os coronéis já estavam generais, deu-se o golpe. Tinha a cara, as mãos e as armas militares, mas – 1º de abril! – a cabeça era empresarial – mega-empresarial multinacional, pra ser mais exato. Um embaixador estadunidense era a mola propulsora e a correia de transmissão.

João Goulart seguia a linha de Getúlio que, em seu governo nacionalista, contrariou determinações dos “patrões” estrangeiros. Gegê estabeleceu o ensino obrigatório, criou leis trabalhistas, fez investigar a dívida externa, que caiu em 40%, entre outras coisas, ameaçou simpatias ao regime nazista e conseguiu, com isso, fundar a Companhia Siderúrgica Nacional, a Petrobrás e outras estatais que os industriais do crescente império estadunidense proibiam por vias tortas. Claro, ele era um latifundiário populista, elitista que conquistou o povo com seu paternalismo, mas suas atitudes criaram condições pra que a população mais pobre começasse a entender como funcionava a sociedade. As associações, sindicatos, federações de trabalhadores ganharam uma força nunca vista e, quando Jango chegou à presidência, encontrou apoio suficiente pra encarar as elites e começar as tais “reformas de base”. Apoiou os movimentos dos trabalhadores, aumentou em 100% o salário mínimo, enfurecendo os patrões e as elites nacionais e assustando os internacionais, em plena época de guerra fria, onde o comunismo era uma ameaça terrificante. Sacrilégio dos sacrilégios, desapropriou as terras em torno das rodovias e ferrovias federais, até dez quilômetros de distância de cada lado, e decretou a reforma agrária. Essa foi a gota d’água e o golpe foi dado. Ou eles perderiam o Brasil do seu controle, como haviam perdido Cuba, poucos anos antes, e temiam perder seus “quintais” na América Latina, entre os quais o Brasil era o mais rico e importante.

Seguindo a estratégia patronal, depois do golpe os movimentos sociais, organizações de trabalhadores, associações, sindicatos foram desarticulados, lideranças foram presas, assassinadas, perseguidas, nas cidades e nos campos. Em todo o território nacional o terrorismo de estado comeu solto, sem freios ou limites. Esse foi o primeiro passo. Em seguida, era preciso destruir as fontes de tanta inquietação popular, tanta rebeldia à exploração do trabalho, e uma das maiores era a educação.

A escola pública, antes reservada para as classes burguesas, apresentava qualidade no ensino. Filho de pobre, na época, simplesmente não estudava ou, em alguns casos, aprendia as primeiras letras e a fazer contas, nada além do suficiente pra atender nos balcões, anotar dados, recados, receber pagamentos, dar troco – em escolinhas de fundo de igreja, de caridade, fruto da boa vontade de algumas poucas pessoas que se dedicavam a alfabetizar e nada mais. Com a lei da obrigatoriedade, os filhos dos pobres puderam conhecer o ensino e começar a tomar consciência da realidade. Com o tempo e capacidade multiplicadora, ia-se pouco a pouco modificando visões de mundo e comportamentos. Daí a força das organizações de trabalhadores, camponeses e outros explorados, mesmo ainda sendo poucos em relação à totalidade. Era preciso dar mais um passo pra acabar com a inquietação dos empregados, dos explorados e dos excluídos. Acabar com a educação pública, destruindo por dentro, mantendo a fachada.

Os salários dos professores foram congelados e corroídos pela inflação “galopante”, as verbas pra educação pública minguaram ou desapareceram, pipocaram escolas particulares, pra onde as classes médias e altas transferiram seus filhos, afastando-os do convívio com os pobres, sempre vistos com desprezo. Os salários levavam os melhores professores, havia concurso para professor de escola particular. Pouco a pouco, professores das escolas públicas foram passando pras particulares. O ensino entrou em processo de destruição gradativa e o período militar da ditadura teve tempo suficiente pra fazer o serviço completo. Ignorantização garantida, com aspecto estatístico de escolaridades ilusórias, pra satisfazer exigências de organismos internacionais dedicados à educação, sem instruir de verdade, manteve o povo desarmado de instrução e informação, fácil de conduzir e controlar.

O terceiro passo foi o controle das comunicações. A imprensa caiu no centro das atenções do poder, a censura se tornou um garrote de amplo alcance, redações foram incendiadas, jornais fechados, jornalistas presos. Os meios apoiadores do golpe cresceram, impérios midiáticos se formaram, mentindo descaradamente, distorcendo a realidade e se especializando em conduzir a opinião pública, enganar a população e exaltar a ditadura com o nome de “revolução democrática”, em verdade demoníaca. Os demônios que comandam a barbárie não sujam as mãos, se escondem acima do poder visível cuja cara, na época, era militar e, hoje, é desses políticos mentirosos que não assumem estarem todos a serviço do (ou subalternizados pelo) poder econômico-financeiro-industrial de elites nacionais e internacionais. Escondidos no escuro do poder econômico, os manipuladores controlam suas marionetes nas instituições do Estado. E destroem todas as contestações ao seu uso privado do patrimônio público e à exploração e à subordinação do próprio público.

Discordo do termo “ditadura militar”. Militar foi só a cara, foram as mãos que executaram o golpe. Quando os generais, anos depois, começaram a exibir nacionalismos e independências – com relação à Amazônia, à política externa ao reconhecer a independência de Angola – com direito a passafora do general Geisel no Kissinger, então secretário de estado dos Estados Unidos e um representante do império mundial, o grupo de Bilderberg (!) – e outras ações fora do planejado, foi decidido que já era hora de saírem os militares, mudar a cara, de montar o cenário de democracia pra continuar desenvolvendo seu controle sobre a sociedade brasileira. Era a hora de “redemocratizar”. Aí começaram a aparecer programas de humor, na televisão e no rádio, ridicularizando os militares. Os movimentos pela democracia passaram a ter voz – sob controle, claro – e a “redemocratização” entrou na pauta, “lenta, segura e gradual”. Depois de gerações de estudantes desinstruídos no ensino público, com o ensino privado sob controle ideológico empresarial, estavam plantadas a ignorância e a alienação no povo brasileiro, garantido o seu controle e sua dispersão. O campo estava pronto.

Quando vejo pessoas informadas, lutadores por uma sociedade menos injusta, exaltando essa “redemocratização” mentirosa, como fruto da luta dos “revolucionários” das esquerdas, só posso interpretar como uma forma de lealdade aos companheiros caídos nessa luta. Uma forma de reconhecimento ao seu sacrifício. Balanço a cabeça, triste, e penso que é uma ingenuidade. Sem desmerecer tantos mártires e seus esforços e sacrifícios, a mudança de forma teve como objetivo manter o caminho da concentração cada vez maior de riquezas, de poder e privilégios para os mesmos poucos – e seus descendentes – que promoveram, alimentaram e determinaram o golpe. Tai a mídia mentirosa e descarada, tai a “flexibilização” (destruição) dos direitos trabalhistas, tai a bancada ruralista, a da bala, a da bola e outras afrontas ao que seria uma democracia. Tai a Agência Nacional do Petróleo entregando riqueza a mega-empresas privadas do petróleo, sob comando de um presidente de um dos partidos comunistas e atirando a polícia com sua tradicional truculência pra cima das manifestações em protesto. Tai a impunidade dos banqueiros, a agressividade violenta da segurança pública, tai o Estado criminoso que não cumpre os princípios básicos da sua própria constituição. Tai o “analfabetismo funcional”, em que os formandos do ensino médio (!) não conseguem ler um texto e interpretá-lo. Tai a fome, a miséria, a ignorância, a exclusão e o abandono, à vista de quem quiser ver.

Isso é, por acaso, uma democracia? Não, é um “1º de abril!” e nada mais. Uma mentira, uma falácia. Os sinais são claros e a narcotização midiática se empenha em confundir a visão da realidade – muito bem sucedida, evidentemente. Inclusive porque a maioria dos que enxergam (as exceções) acabam formando “igrejas” da esquerda messiânica e se isolam, com seu linguajar inacessível e suas verdades inabaláveis. Acabam servindo à montagem do cenário democrático, dispersando em conflitos inúteis e criando repulsa contra a idéia de revolução. Um tiro no pé. É preciso ser exceção entre as exceções. Foda, isso. Vejo os que se pretendem revolucionários condicionados a vaidades, orgulhos, desejos de liderança, de controle e condução de massas, à disputa encarniçada contra os que discordam, ao insulto e às acusações morais. Perda de tempo, de energia – além de serviço prestado na construção desse cenário sujo de uma democracia falsa. Formam grupinhos isolados e, ao invés de se dedicarem a conscientizar a população sobre o que acontece, preferem arrebanhar e impor ideologias arrogantes como religiões, para disputar carniça política com outros iguais, embora de outras cores. Respeito é o que lhes falta, além de humildade – característica fundamental do revolucionário, no meu entender.

É necessário ver a realidade como ela é, pra poder trabalhar em sua modificação e promover mudanças estruturais em nossa sociedade e torná-la mais humana. É preciso perceber como somos levados, em nossos valores e comportamentos, a colaborar com essa barbárie em que nos encontramos, os que podem expulsando a miséria e a pobreza para longe dos olhos, construindo, mantendo e sustentando a sociedade dos privilegiados. O roubo de direitos é o que garante os privilégios. O conflito, o confronto, a disputa, o insulto são dispersões comuns ao trabalho revolucionário. As raízes de uma revolução verdadeira devem estar fincadas em nossa alma, em nossos valores, comportamentos, objetivos e desejos, na forma de nos relacionarmos e de vivermos. A partir de dentro a revolução se faz. Mas a dispersão programada torna os revolucionários inócuos, sem poder de agregar, de mobilizar, nem mesmo de pressionar além de mudanças cosméticas, inofensivas à estrutura.

Os militares golpistas mudaram a data do golpe, pra não cair no ridículo, no dia da mentira. É uma questãozinha, perto da grandeza dos seus crimes.

Mas a ditadura está ai mesmo, na ignorância plantada, no controle e imenso poder da mídia empresarial sobre as comunicações, na miséria e exclusão imposta às maiorias. Não existe democracia sem um povo instruído, informado e consciente, conhecedor das estruturas administrativa, legislativa e judiciária. Não há democracia com financiamento de campanhas eleitorais pelos empresários. Até onde minha precária vista alcança, nunca houve democracia por estas bandas, se é que houve em algum lugar, mesmo no chamado primeiro mundo – “primeiro” às nossas custas, colonizados que fomos e ainda somos.

Estamos longe, ainda. Caminhemos, com cuidado, mas sem pausa. O ritmo parece se acelerar, no mundo todo. A cada um que se proponha, seu quinhão de responsabilidade e satisfação.

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