Aviso aos navegantes

Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

25 de agosto de 2012

Será a mente capaz de ver a totalidade do medo?

A vida vivida com medo é escura, é feia. A maioria de nós vive amedrontado de inúmeras formas, e precisa examinar se a mente é capaz de ficar totalmente livre do medo. Ninguém quer ficar livre do prazer, mas todos querem ficar livres do medo; e não percebemos que ambos andam sempre juntos; eles são, ambos, mantidos pelo pensamento. Eis porque é importante compreender o pensamento.

Temos medo da morte, da vida, da escuridão, do nosso vizinho, medo de nós mesmos, medo de perder o emprego, da insegurança, e os medos das camadas inconscientes mais profundas, ocultos nos recessos da mente. Será possível — e sem análise — a mente ficar livre do medo, de modo que fique realmente livre para aproveitar a vida? Não para perseguir o prazer, mas para aproveitar a vida? Isso não será possível enquanto existir o medo. Será que a análise eliminará o medo? Ou será a análise uma forma de paralisar a mente em relação à libertação do medo? A paralisia através da análise. A análise é uma das formas intelectuais de entretenimento. Porque na análise existe o analista e o analisado, quer o analista seja um profissional ou você mesmo. Quando existe a análise, existe a divisão entre o analista e o analisado e, portanto, conflito. E na análise você precisa de tempo; você leva dias, anos — dando a você mesmo a oportunidade de adiar a ação.

Você pode analisar todo o problema da violência indefinidamente, buscando explicações para as suas origens. Você pode ler volumes inteiros sobre as causas da violência. Tudo isso leva tempo e, enquanto isso, você usufrui da sua violência. A análise implica a divisão e o adiamento da ação e, por conseguinte, a análise traz mais conflito, e não menos. E a análise implica tempo. A mente que observa a verdade disso está livre da análise e é, portanto, capaz de lidar de frente com a violência, a qual é "o que existe". Se você observar a violência em você mesmo, a violência produzida pelo medo, pela insegurança, pela sensação de solidão, de dependência, da eliminação dos prazeres, e assim por diante, se você tem ciência disso e observa de modo total, sem análise, então você dispõe de toda a energia que foi dissipada através da análise para com ela ir além "daquilo que existe".

Como poderão os medos de raízes tão profundas, transmitidos a nós pela sociedade em que vivemos, herdados do passado, ser expostos, de modo que a mente adquira total e completa liberdade em relação a esse terror? Será possível isso através da análise dos sonhos? Podemos ver com nitidez o absurdo da análise. E será que, através dos sonhos, você ficará livre da violência?

Só porque os profissionais afirmam que você precisa sonhar — caso contrário ficará louco — será que você é obrigado a sonhar? Por que sonhar? Quando a mente está em atividade permanente, tanto de dia quanto de noite, ela não tem descanso, ela não adquire uma nova característica de novidade. A mente só se renova quando em completo silêncio, adormecida, em quietude total. Será a análise dos sonhos outra dessas falácias que aceitamos com facilidade? Os sonhos são a continuidade de nossa atividade diária através do sono, mas você produz ordem durante o dia — não a ordem semelhante à de um projeto de engenharia ou que está de acordo com o que é estabelecido por uma sociedade ou pelas sansões de uma religião; isso não é ordem, isso é amoldar-se. Onde existe conformidade e obediência não existe ordem. A ordem só existe quando você observa o quanto a sua própria vida é desordenada durante as horas de vigília. Através da observação dessa desordem surge a ordem. E quando você tem essa ordem na sua vida diária, os sonhos se tornam desnecessários.

Pode então a pessoa observar o medo na sua totalidade, na sua verdadeira raiz, na sua causa, ou apenas os seus galhos? É a mente capaz de observar, de ficar ciente, de dedicar atenção total ao medo, seja ele o medo oculto nas profundezas da mente ou aquele que se mostra nas expressões — diárias como o medo da dor de ontem voltando hoje, ou voltando de novo amanhã, ou o medo de perder o emprego, o medo da insegurança, interna e externa, o medo insuperável da morte. Há inúmeras formas de medo. Deveríamos arrancar cada galho ou encarar, enfrentar o medo na sua totalidade? Será a mente capaz de ver a totalidade do medo? Estamos acostumados a lidar com o medo fragmentado e nos preocupamos com esses fragmentos e não com a totalidade do medo.

Como vocês sabem, olhamos a raiva, a inveja, o ciúme, o medo ou o prazer como quem observa. Queremos livrar-nos do medo, ou perseguir o prazer. Portanto, há sempre um observador, alguém que olha, que pensa, de modo que olhamos o medo como se estivéssemos do lado de fora olhando para dentro. Pergunto, será que você é capaz de examinar o medo sem o observador? Concentre-se nessa questão: você é capaz de observar o medo sem o observador? O observador é o passado. O observador reconhece a reação que ele chama de medo em termos de passado; ele dá a isso o nome de medo. Sendo assim, ele está sempre olhando o presente a partir do passado e há, portanto, uma divisão entre observador e o observado. Então, será que você é capaz de observar o medo sem a reação a isso como algo do passado, que é o observador?

Será que fui claro? Veja: se você me insultou ou me elogiou, tudo isso fica acumulado na memória, que é o passado. E o passado é o que observa, é aquele que pensa. E se eu olho para você com os olhos do passado, não olho de modo original. Assim eu nunca o vejo com exatidão, eu o vejo com olhos que já foram corrompidos, que já foram embotados. Então, será que você é capaz de observar o medo sem o passado? Ou seja, não dar nome ao medo, não usar a palavra medo, mas apenas observar?

Quando você observa como um todo — e essa totalidade de atenção só é possível quando não existe observador, que é o passado — dissipa-se a totalidade do conteúdo da consciência com forma de medo.

Há o medo que vem de dentro e o que vem de fora. O medo de que meu filho morra numa guerra. A guerra é algo que está fora, uma invenção da tecnologia que desenvolveu instrumentos monstruosos de destruição. E, interiormente, eu me apego ao meu filho, eu o amo, mas eu o eduquei para se amoldar a essa sociedade na qual ele vive, que manda mantar. E então eu aceito o medo, tanto interior quanto essa invenção destrutiva chamada guerra, que vai matar o meu filho. E eu chamo isso amor ao meu filho! Isso é medo. Construímos uma sociedade corrompida, imoral; ela se preocupa apenas em possuir cada vez mais, em consumir. Não se preocupa com o desenvolvimento do mundo e dos seres humanos como um todo.

Sabem, nós não temos compaixão. Temos uma quantidade imensa de conhecimento e de experiência. Fazemos coisas extraordinárias na medicina, na tecnologia e na ciência, mas não temos compaixão de espécie alguma. Compaixão significa paixão por todos os seres humanos, por todos os animais, pela natureza. E como haverá compaixão quando existe medo, quando a mente está em permanente busca de prazer? Você quer controlar o medo, quer enterrá-lo e quer também a compaixão. Você quer tudo isso. Mas é impossível ter tudo isso. Você só pode ter compaixão quando não existe medo. Eis porque é tão importante compreender o medo nos nossos relacionamentos. E o medo extirpado quando você observa a reação sem lhe dar um nome. O próprio ato de dar um nome é uma projeção do passado. Assim, o pensamento sustenta e persegue o prazer, e o pensamento dá força ao medo — tenho medo do que pode acontecer amanhã; tenho medo de perder o emprego; tenho medo do tempo na forma de morte.

O pensamento é, pois, responsável pelo medo. E vivemos com o pensamento. Nossas atividades diárias baseiam-se no pensamento. Assim, qual o papel desempenhado pelo pensamento nos relacionamentos humanos? Se ele tem um papel, então o relacionamento é uma rotina, é medo e prazer mecânicos, cotidianos e sem sentido.

Krishnamurti - Da gravação de um diálogo público em São Francisco, 11 de março de 1973

24 de agosto de 2012

O observador é a coisa observada

O observador é o censor que não deseja o medo; o observador é o conjunto de todas as suas experiências relativas ao medo. E, assim, o observador está separado da coisa a que chama medo; há espaço entre ambos; está perpetuamente tentando dominá-lo ou dele fugir, e daí provém essa batalha entre ele próprio e o medo — essa batalha que é uma enorme perda de energia.

Observando-o, aprendereis que o observador é meramente um feixe de idéias e lembranças sem validade, sem substância nenhuma, ao passo que aquele medo é uma realidade; assim, estais tentando compreender um fato com uma abstração, e isso, naturalmente, não podeis fazer. Mas, será o observador, que diz "Tenho medo", diferente da coisa observada, o medo? O observador é o medo e, uma vez percebido isso, não há mais dissipação de energia no esforço para livrar-se do medo, e o intervalo de tempo-espaço, entre o observador e a coisa observada, desaparece. Quando percebeis que sois uma parte do medo, que não estais separado dele, que vós sois o medo, então nada podeis fazer a seu respeito: o medo terminou totalmente.

Krishnamurti

Solidão

Que coisa estranha é a solidão, e como ela é assustadora! Nunca nos permitimos muita intimidade com ela; e se por acaso o fazemos, rapidamente fugimos. Fazemos qualquer coisa para fugir da solidão, para encobri-la. Nossa preocupação consciente e inconsciente parece ser evitá-la ou superá-a. Evitar e superar a solidão são ações igualmente fúteis; embora reprimidos ou negligenciados, a dor e o problema ainda existem. Você pode se perder na multidão e ainda estar completamente sozinho; você pode estar intensamente ativo, mas a solidão silenciosamente se insinua a você; ponha o livro de lado, e lá está ela. Diversões e bebidas não podem afogar a solidão; você pode escapar dela temporariamente, mas quando o riso e os efeitos do álcool terminam, o medo da solidão retorna. Você pode ser ambicioso e bem-sucedido, pode ter enormes poderes sobre os outros, pode ser rico em conhecimento, pode tomar parte em um culto religioso e se esquecer de si mesmo no palavrório dos rituais; mas, faça o que quiser, a dor da solidão permanece. Você pode existir somente por seu filho, pelo Mestre, pela expressão de seu talento; mas, como a escuridão, a solidão cobre você. Você pode amar ou odiar, fugir disso segundo seu temperamento e suas exigências psicológicas; mas a solidão estará lá, esperando e observando, retirando-se apenas para se aproximar novamente.

A solidão é a percepção do isolamento total; nossas atividades não são fechadas em si mesmas? Embora nossos pensamentos e emoções sejam expansivos, não são exclusivos e separadores? Não estamos buscando controle em nossos relacionamentos, em nossos direitos e posses, e com isso criando resistência? Não consideramos o trabalho como “seu” e “meu”? Não estamos identificados com o coletivo, com o país, ou com alguns? Toda a nossa tendência não é isolarmo-nos, dividir e separar? A própria atividade do Eu, em qualquer nível, é um modo de isolamento; e a solidão é a consciência do Eu sem atividade. A atividade, física ou psicológica, torna-se um meio de auto-expansão. E quando não existe atividade de tipo algum, há uma percepção do vazio do Eu. É esse vazio que buscamos preencher, e passamos nossas vidas preenchendo-o, em níveis nobres ou desprezíveis. Pode parecer que não há danos sociológicos em preencher esse vazio em níveis nobres; mas a ilusão gera dor e destruição incalculáveis, que podem não ser imediatos. A ânsia de preencher esse vazio – ou de fugir dele, que é a mesma coisa – não pode ser sublimada ou reprimida; pois quem é a entidade que vai suprimir ou sublimar? Não é essa mesma entidade uma outra forma de anseio? Os objetos de anseio podem variar, mas não serão semelhantes todos os anseios? Você pode mudar o objeto de seu anseio, da bebida para o pensamento; mas sem entender o processo do anseio a ilusão será inevitável.

Não existe uma entidade separada do anseio; só existe anseio, não existe ninguém que anseia. O anseio assume diferentes máscaras, em momentos diferentes, dependendo de seus interesses. A memória desses interesses variados encontra o novo, o que produz conflito, e assim, aquele que escolhe nasce, estabelecendo a si mesmo como uma entidade separada e distinta do anseio. Mas a entidade não é diferente de suas qualidades. A entidade que tenta preencher ou fugir do vazio, da incompletude, da solidão, não é diferente daquilo que ela evita; ela é aquilo. Ela não pode fugir de si mesma; tudo que pode fazer é entender a si própria. Ela é sua solidão, seu vazio; e enquanto considerá-lo como algo separado de si, estará em ilusão e em interminável conflito. Só quando experienciar diretamente que ela é sua própria solidão, poderá haver libertação do medo. O medo existe apenas em relação a uma idéia, e a idéia é a reação da memória como pensamento. O pensamento é o resultado da experiência; e embora ele possa ponderar sobre o vazio, ter sensações a respeito, ele não pode conhecer o vazio diretamente. A palavra “solidão”, com suas lembranças de dor e medo, impede a experienciação do novo. A palavra é lembrança, e quando a palavra não é mais signifcativa, o relacionamento entre o experienciador e o experienciado é totalmente diferente; assim, aquele relacionamento é direto e não através de uma palavra, por meio da memória; o experienciador é a experiência, o que resulta em libertação do medo.

Amor e vazio não podem permanecer juntos; quando há o sentimento de solidão, o amor não existe. Você pode esconder o vazio sob a palavra “amor”, mas quando o objeto de seu amor não existe mais ou não responde, você tem consciência do vazio e se sente frustrado. Usamos a palavra “amor” como um meio de fugir de nós mesmos, de nossa própria insuficiência. Agarramo-nos à pessoa que amamos, somos ciumentos, sentimos saudades quando ela não está presente e ficamos totalmente perdidos quando ela morre; e depois buscamos conforto de alguma outra forma, em alguma crença, em algum substituto. Isso é amor? O amor é uma idéia, o resultado de associações; o amor não é algo a ser usado como uma fuga de nossa própria infelicidade; e quando nós realmente o usamos, criamos problemas que não tem solução. O amor não é uma abstração, mas sua realidade só poderá ser experienciada quando a idéia, a mente, não for mais o fator supremo.

Krishnamurti - Comentários sobre o viver

13 de agosto de 2012

Examinando a questão do conflito.


Áudio da reunião pelo Paltalk na noite de 11/08/2012

Pode a totalidade da mente tornar-se silenciosa?

(...) Para a maioria de nós, o pensar é de suma importância; mas é de fato? Ele tem sua importância, mas o pensamento não pode descobrir aquilo que não é produto do pensamento. O pensamento é resultado do "conhecido" e, por conseguinte, não pode sondar o "desconhecido", o incognoscível. O pensamento não é desejo, desejo que tem por objeto as necessidades materiais ou um elevado alvo espiritual? Não nos referimos ao pensamento do cientista, no seu laboratório, ou o pensamento do matemático, absorvido em seus cálculos, etc., porém ao pensamento conforme opera em nossa vida de cada dia, em nossos diários contatos e reações. Para subsistir, somos forçados a pensar. O pensar é o processo da subsistência de um indivíduo ou de uma nação. O pensar — que é desejo, sob o aspecto mais vulgar ou mais sublime — é sempre e necessariamente egocêntrico e um fator de condicionamento. Não importa se estamos pensando no Universo, em nosso próximo, em nós mesmos, ou em Deus — todo pensar é limitado, condicionado, não acha?(1)
(...) Temos acumulado conhecimentos a respeito de tantos aspectos da vida — medicina, guerra, leis, ciências — e temos pelo menos algum conhecimento de nós mesmos, de nossa consciência. Com tão vasto cabedal de conhecimentos, estamos livres do sofrimento, da guerra, do ódio? Se soubermos mais ainda, seremos libertados? Podemos saber que a guerra será inevitável enquanto o indivíduo, o grupo, o país for ambicioso, ávido de poder, e no entanto cada um de nós continua a seguir o caminho que conduz à guerra. Aquele centro onde se gera o antagonismo, o ódio, pode ser transformado radicalmente pelo conhecimento? O amor não é o oposto do ódio; se, pelo conhecimento, se transforma o ódio em amor, isso não é amor. Essa transformação produzida pelo pensamento, pela vontade, não é amor, porém, tão só, uma outra forma conveniente de autoproteção. (2)
(...) O pensamento é reação do pretérito, reação da memória, não é exato? A memória é tradição, experiência, e sua reação a qualquer experiência nova é produto do passado; nessas condições, a experiência está sempre a tornar mais forte o passado. A mente é o resultado do passado, do tempo; o pensamento é o produto de muitos dias passados. Quando o pensamento deseja transformar-se, tentando ser ou não ser isto ou aquilo, apenas perpetua a si mesmo, sob um nome diferente. Sendo produto do "conhecido", o pensamento nunca poderá experimentar "o desconhecido"; resultado do tempo, nunca compreenderá o atemporal, o Eterno. O pensamento deve cessar para que possa existir o Real.(3)
Veja senhor, temos tanto medo de perder aquilo que pensamos possuir, que nunca examinamos a fundo estas coisas. Só damos atenção à superfície de nós mesmos e vivemos a repetir palavras e frases de muito pouca significação; e, assim, continuamos medíocres e geramos antagonismos tão irrefletidamente como geramos filhos.(4)
Não há dúvida de que a mente está sempre a buscar algum resultado, algum meio de realizar algo. A mente é um instrumento que foi ajustado, parte por parte, ela é produto do tempo e só pode pensar em termos de resultado, de realização, de algo que se precisa ganhar ou evitar.(5)
(...) O próprio pensamento é o fabricante dessa rede; o pensamento só pode conduzir à amplidão do tempo, que é a esfera onde o saber, a ação, a virtude, têm muita importância. O raciocinar, por mais requintado ou por mais simples que seja, não pode quebrar o pensamento. A consciência como "experimentador", "observador", "selecionador", "censor", "vontade", tem de extinguir-se, voluntariamente, de maneira feliz, sem esperança alguma de recompensa. Deixa então de existir a entidade que busca. Isso é meditação. A realidade não pode ser procurada; ela existe quando aquele que busca não existe. A mente é tempo, e o pensamento não pode descobrir o imensurável.(6)
(...) Quando a mente está toda ocupada com suas penas, esperanças e temores, não lhe sobra espaço para a liberdade. O processo egocêntrico do pensamento só serve para tolhê-la mais ainda; e assim começa a funcionar o círculo vicioso. A preocupação desvaloriza, amesquinha, superficializa a mente. Uma mente preocupada não é uma mente livre, e a preocupação a respeito da liberdade gera, do mesmo modo, mediocridade. A mente permanece medíocre, quer esteja preocupada com Deus, o estado, a virtude ou o próprio corpo. Essa preocupação com o corpo impede a adaptabilidade ao presente, impede-lhe de adquirir vitalidade e mobilidade, mesmo em grau limitado. O "eu", com suas preocupações, atrai sobre si mesmo penas e problemas, que também atingem o corpo; e a apreensão relativa aos males físicos opera, mais ainda, em detrimento do corpo. Não significa isso que se deva ser negligente com a saúde, mas a preocupação com a saúde, tal como a preocupação com a Verdade, com idéias, só serve para proteger a mediocridade da mente. Há uma vasta diferença entre a mente preocupada e a mente ativa. A mente ativa está em silêncio, vigilante, sem fazer escolha.(7)
(...) O silêncio deve ser diligentemente cultivado, nutrido, fortalecido? E quem é o "cultivador"? Ele é diferente da totalidade do nosso ser? Existe silêncio, uma mente tranquila, quando um desejo domina todos os demais ou levanta defesas contra eles? Há silêncio quando se disciplina, molda e controla a mente? Não subentende tudo isso a existência de um censor, um pretenso "eu superior", que controla, julga, escolhe? Mas existe tal entidade? Se existe, não é produto do pensamento? O pensamento que se divide em "superior" e "inferior", "entidade permanente" e "entidade impermanente", é, obstante, produto do passado, da tradição, do tempo. Nesta divisão ele acha a sua própria segurança. Agora, o pensamento, buscando a segurança no silêncio, postula um método ou sistema que lhe ofereça o que deseja. Em lugar das coisas mundanas, aspira agora ao prazer do silêncio, fazendo, assim, nascer o conflito entre o que é e o que deveria ser. Não há silêncio, onde há conflito, repressão, resistência... Não haverá silêncio, se existe uma entidade a buscá-lo. Só se realizará o silêncio da mente tranquila, quando não existir mais "o que busca", quando não existir mais o desejo. Sem responder, faça esta pergunta a si mesmo: Pode a totalidade de nosso ser tornar-se silenciosa? Pode a totalidade da mente — a mente consciente e bem assim a inconsciente — tornar-se tranquila?(8)
(...) Não é curioso como a mente engana a si mesma? A mente não gosta de ser perturbada, não gosta de ser arrancada de seus velhos padrões, seus confortáveis hábitos de pensamento e de ação; ao ver-se perturbada, procura meios e modos de estabelecer novas delimitações, novas "pastagens", onde possa viver em segurança. É essa zona de segurança que quase todos andamos buscando, e o desejo de proteção, segurança, nos faz dormir. Circunstâncias, uma palavra, um gesto, uma experiência, poderão acordar-nos, perturbar-nos, contudo desejamos voltar a dormir novamente. Isso está acontecendo a todas as horas, à maioria de nós e não é um estado desperto. O que precisamos compreender são as maneiras em que a mente se põe a dormir, não acha?(9)
(...) Se cuidarmos apenas de conhecer as maneiras como a mente se põe a dormir, iremos de novo encontrar um meio, talvez diferente, de vivermos sem perturbações, em segurança. O importante é "ficar desperto" e não perguntar como ficar desperto; o desejo de como é desejo de segurança.
"Que se pode fazer então?"
Ficar com o descontentamento, sem o desejo de apaziguá-lo. O desejo de não ser perturbado é o que deve ser compreendido. Esse desejo, que assume várias formas, é o impulso a fugir de o que é. Desaparecendo esse impulso — não em virtude de compulsão, sob qualquer forma, consciente ou inconsciente — só então desaparece a dor do descontentamento. A comparação de o que é com o que deveria ser, causa dor. O cessar da comparação não é um estado de contentamento; é um estado de vigilância, livre das atividades do "eu".(10)
(...) "Mas como esvaziar a mente de seu saber?"
Não há nenhum "como". A prática de qualquer método só pode tornar a mente mais condicionada ainda, porque, com ele, temos um resultado e não uma mente livre do saber, do "eu". Não se necessita de método, porém, apenas, de um percebimento passivo da verdade relativa do saber.(11)
(...) O reconhecimento é o "processo do conhecido", produto do passado. A mente tem medo daquilo com que não está familiarizada... O que se experimenta se torna "o conhecido", o passado, e é desse passado, desse conhecido, que provém o reconhecimento. Enquanto houver esse movimento, vindo do passado, não existirá "o novo".(12)
(...) O pensamento é produto do tempo; o pensamento está ancorado no passado, não pode em tempo algum existir livre do passado. Se o pensamento se liberta do passado, deixa de ser pensamento. Especular sobre o que existe além da esfera da mente é de todo em vão. Para intervenção dAquilo que se acha além do pensamento, é necessário que o pensamento — o "eu" — deixe de existir. A mente deve estar, de todo, imóvel, tranquila — com a tranquilidade da ausência de "motivo". A mente não pode atraí-lo a si. A mente pode dividir, e de fato divide, a sua esfera de atividades, classificando-as em nobres e ignóbeis, desejáveis e indesejáveis, superiores e inferiores, mas todas estas divisões e subdivisões estão dentro dos limites da própria mente; e, assim, todo movimento da mente, em qualquer direção que seja, é reação do passado, e aquele que não a percebe permanecerá na sua escuridão, não importa o que faça; suas penitências e votos e disciplinas e sacrifícios poderão ter uma significação sociológica, confortante, mas nenhum valor tem, com relação à Verdade.(13)
A mente é semelhante a uma máquina a funcionar noite e dia, está sempre a "tagarelar" e sempre ocupada — acordada ou dormindo. Ela é veloz e inquieta como o mar. Uma outra parte dessa intrincada e complexa máquina procura controlar o seu movimento e, desse modo, começa o conflito entre os desejos e ânsias opostas. Uma parte pode ser chamada "eu superior" e a outra "eu inferior", mas todas as duas se acham na esfera da mente. A ação e reação da mente, do pensamento, são quase simultâneas e quase automáticas. Todo esse processo — consciente e inconsciente, de aceitação e rejeição, de sujeição e luta para ser livre, é extremamente rápido. A questão, pois, não é de como controlar esse complexo mecanismo, já que todo controle produz atrito e dissipação de energia; a questão é de saber se essa mente, que se move tão acelerada, pode diminuir a sua velocidade.(14) Reflexões sobre a vida, pág. 252
(...) Nunca notou, senhor, que quando estamos a observar uma coisa, a mente se torna mais lenta? Ao observar aquele carro que lá vai, pela estrada, ou ao olhar atentamente para qualquer objeto físico, a sua mente não está funcionando mais devagar? A vigilância, a observação torna, de fato, a mente mais vagarosa. O contemplar um retrato, uma imagem, um objeto, serve para aquietar a mente, o que também se consegue com a repetição de uma frase; mas, nesse caso, o objeto ou a frase se torna muito importante, mais importante do que a diminuição da velocidade da mente e o que é possível descobrir então... Prestamos deveras atenção a alguma coisa, ou interpomos entre o observador e a coisa observada uma cortina de preconceitos, valores, juízos, comparações, condenações?... Se me permite sugerir, não se deixe embargar por palavras ou por conclusões positiva ou negativa. Pode haver observação sem essa cortina? Por outras palavras, pode haver atenção quando a mente está ocupada? Só a mente desocupada pode prestar atenção. A mente se torna lenta, alertada, quando há vigilância, que é a atenção da mente desocupada.(15)
(...) A mente é o resultado de muitos milhares de anos de tradição e experiência. É capaz de invenções fantásticas, desde as mais simples às mais complexas. É capaz de extraordinárias alucinações, e vastas percepções. As experiências e esperanças, as ânsias, as alegrias e os conhecimentos acumulados, tanto do grupo como do indivíduo, tudo está lá, depositado nas camadas mais profundas da consciência, e é possível ressuscitar as experiências, visões, etc., herdadas e adquiridas. Dizem que certas drogas podem produzir uma lucidez, uma visão de grandes profundidades e alturas, libertar a mente de suas agitações, conferindo-lhe grande energia e acuidade. Mas é necessário a mente atravessar esses ocultos e sombrios corredores para alcançar a luz? E quando por qualquer desses meios ela encontra luz, é a luz do Eterno? Ou é a luz do "conhecido", da coisa reconhecida, produto da busca, da luta, da esperança? É necessário passar por esse fastidioso "processo" para se achar o imensurável? Pode-se deixar de lado tudo isso e chegar àquilo que se pode chamar amor?(16)
(...) É necessário passar por todas essas experiências? São elas necessárias para abrir a porta do Eterno? Não podem ser deixadas de lado? O essencial, afinal de contas, é o autoconhecimento, que faz nascer a mente tranquila. A mente tranquila não é produto da vontade, da disciplina, das várias praticas destinadas a subjugar o desejo. Todas essas práticas e disciplinas só tem o efeito de fortalecer o "eu", e a virtude se torna então um outro rochedo, sobre o qual o "eu" pode edificar a sua morada de importância e respeitabilidade. A mente precisa estar vazia do "conhecido", para que se torne existente o incognoscível. Se não se compreende as atividades do "eu", a virtude começa por vestir a capa da importância. O movimento do "eu", com sua vontade e desejo, suas buscas e acumulações, tem de cessar inteiramente. Só então se tornará existente o atemporal. O atemporal não pode ser chamado ou atraído. A mente que procura atrair o Real por meio de várias práticas e disciplinas, por meio de preces e atitudes, só pode receber suas próprias e agradáveis "projeções", que não são o Real.
"Percebo agora, depois de tantos anos de asceticismo, disciplina e automortificação, que minha mente está cativa na prisão que ela própria construiu, e que as paredes dessa prisão precisam ser demolidas. Como por mãos à obra?"
O próprio percebimento de que elas precisam desaparecer é suficiente. Toda ação, visando demoli-las, põe em movimento o desejo de realização, ganho, fazendo, portanto, nascer o conflito dos opostos, o "experimentador" e a "experiência", a entidade que busca e a coisa buscada. Perceber o falso como falso é, em si, suficiente, porquanto esse próprio percebimento liberta a mente do falso.(17)
(...) A mente está cativa na prisão que ela própria construiu, a prisão de seus desejos e esforços, e todo movimento dela, em qualquer direção, se faz dentro dos limites da prisão; mas, não estando cônscia disso, a mente, no seu sofrer e no seu conflito, busca um agente exterior que possa libertá-la. Em geral, acha o que procura, mas esse achado é produto de seu próprio movimento. Ela continua cativa, cm a só diferença de ser uma prisão nova — o que lhe é mais satisfatório e confortante.(18)
(...) Se a mente perceber a verdade disso, não à força de argumentação, convicção ou crença, mas pelo ser simples e atenta, tem então fim o pensamento. O findar do pensamento não é sono, abatimento da vitalidade, estado de negação; é um estado de todo diferente.(19)

(1) Reflexões sobre a vida, pág. 206
(2) Reflexões sobre a vida, pág. 207
(3) Reflexões sobre a vida, pág. 207
(4) Reflexões sobre a vida, pág. 207
(5) Reflexões sobre a vida, pág. 184
(6) Reflexões sobre a vida, pág. 184
(7) Reflexões sobre a vida, pág. 216
(8) Reflexões sobre a vida, pág. 216-217
(9) Reflexões sobre a vida, pág. 220
(10) Reflexões sobre a vida, pág. 220-221
(11) Reflexões sobre a vida, pág. 228
(12) Reflexões sobre a vida, pág. 236
(13) Reflexões sobre a vida, pág. 237-238
(14) Reflexões sobre a vida, pág. 252
(15) Reflexões sobre a ida, pág. 253
(16) Reflexões sobre a vida, pág. 259-260
(17) Reflexões sobre a vida, pág. 260-261
(18) Reflexões sobre a vida, pág. 242
(19) Reflexões sobre a vida, pág. 243

Uma experiência de bem-aventurança

A imaginação perverte o percebimento de o que é; no entanto, como nos orgulhamos de nossa imaginação e de nosso especular. A mente especulativa, com seus pensamentos complicados, não é capaz de transformação fundamental; não é uma mente revolucionária. Vestiu-se como deveria ser e está seguindo o padrão de suas próprias projeções limitadas, confinantes. O que é bom não está no que deveria ser, mas na compreensão do que é. A mente tem de por de lado toda imaginação e especulação para que o Real tenha existência.
Ele era moço ainda, mas chefe de família e conceituado homem de negócios. Parecia muito preocupado e atribulado, e ansioso por dizer alguma coisa. 
"Há tempos ocorreu-me uma experiência verdadeiramente extraordinária, e como nunca relatei a ninguém não sei se sou capaz de a descrever com clareza para você; espero que sim, pois não há ninguém mais a quem possa me dirigir. Essa experiência arrebatou-me completamente o coração; entretanto, foi-se e dela só me resta a vã lembrança. Talvez você possa ajudar-me a captá-la novamente. Vou relatar-lhe com a possível exatidão o que foi esse estado abençoado. Tenho lido a respeito dessas coisas, mas tudo o que li não passava de vãs palavras, que só me falavam aos sentidos; o que me aconteceu foi uma coisa fora da esfera do pensamento, da esfera da imaginação e do desejo, e eu a perdi. Rogo-lhe para que me ajude a recuperá-la". Calou-se por um instante, e continuou:
"Uma certa manhã despertei muito cedo; a cidade ainda dormia e seus rumores ainda não haviam começado. Senti-me impelido a sair; vesti-me rapidamente e saí para a rua. Nem sequer o caminhão do leite havia começado a circular. A primavera estava em início e o céu era de um azul pálido. Apoderou-se de mim um forte sentimento de que deveria ir ao parque, distante cerca de uma milha. Desde o instante em que transpus a porta da rua, veio-me um estranho sentimento de leveza, como se estivesse caminhando no ar. O edifício fronteiro, um desgracioso conjunto de apartamentos, perdera toda sua fealdade; até os tijolos pareciam mais vivos e luminosos. Todo objeto insignificante, que eu de ordinário não teria sequer notado, parecia dotado de uma qualidade extraordinária, peculiar e, coisa estranha, tudo parecia parte de mim mesmo. Nada estava separado de mim; com efeito, o "eu", como observador, como percipiente, tinha-se ausentado, se você percebe o que quero dizer. Não havia "eu" separado daquela árvore ou do jornal jogado na sarjeta ou das aves que chamavam umas às outras. Era um estado de consciência que eu nunca antes experimentara."
"No caminho do parque", prosseguiu, "havia uma loja de flores. Centenas de vezes passei por ali e de cada vez não dava mais do que um simples relance de olhos para as flores. Mas naquela manhã parei diante da loja. A vitrine estava ligeiramente embaçada, do calor e da umidade interiores, mas isso não me impedia de ver as diversas variedades de flores. Enquanto ali estava, a contempla-las, comecei a sorrir e a rir, possuído de uma alegria nunca experimentada anteriormente. As flores estavam a falar-me e eu a falar com elas; sentia-me misturado com elas, elas faziam parte de mim mesmo. Ao dizer-lhe isso poderei dar-lhe a impressão de que me achava num estado histérico, ligeiramente privado de razão; mas não era assim. Vestira-me com muito cuidado, perfeitamente cônscio dos meus atos, escolhendo peças limpas de vestuário, consultando o relógio, vendo os letreiros das lojas, inclusive o de meu alfaiate, e lendo os títulos dos livros expostos na vitrine de uma livraria. Tudo era vivo e eu amava todas as coisas. Eu era o perfume daquelas flores, mas não havia "eu" a cheiras as flores, se você entende o que quero dizer. Não havia separação entre elas e mim. Aquela loja de flores apresentava um fantástico espetáculo de cores, de uma beleza que parecia extasiante, pois o tempo e sua medida haviam cessado. Devo estar ali mais de vinte minutos, mas garanto-lhe que não tinha noção nenhuma de tempo. Foi-me difícil partir de perto daquelas flores. O mundo de luta, de dor e sofrimento era inexistente naquela hora. Com efeito, num tal estado as palavras são sem significação. As palavras são descritivas, discriminativas, comparativas, mas naquele estado não existiam palavras. "Eu" não estava experimentado; só havia um estado — a experiência. O tempo cessara: não havia passado, presente ou futuro.  Só havia — Oh! Não sei expressá-lo por palavras, mas não importa. Havia uma Presença — não, não é esta a palavra. Era como se a Terra, com tudo o que nela e sobre ela existe, tivesse recebido uma benção dos céus, e eu, dirigindo-me para o parque, fazia parte dela. Ao aproximar-me do parque, fiquei completamente fascinado pela beleza daquelas árvores familiares. Do amarelo pálido ao verde mais escuro, as folhas dançavam cheias de vida. Cada uma das folhas destacava-se, separadamente, e toda a riqueza da Terra se concentrava numa única folha. Senti o coração acelerar-se; tenho um coração robusto, mas mal podia respirar, ao entrar no parque, e pensei desmaiar. Sentei-me num banco, as lágrimas rolavam-me pelas faces. Rodeava-me um silêncio verdadeiramente intolerável. Mas esse silêncio estava purificando todas as coisas, lavando-as da dor e do sofrimento. Ao internar-me mais no parque, havia música no ar. Fiquei surpreso, pois não havia vasas nas imediações e por certo ninguém teria levado um rádio para o parque àquela hora da madrugada. A música fazia parte daquela totalidade. Toda a bondade, toda a compaixão do mundo estava presente naquele parque, Deus estava ali."
"Não sou teólogo nem muito menos religioso", continuou, "já entrei pelo menos uma dúzia de vezes numa igreja, mas isso nunca teve muita significação para mim. Não suporto o amontoado de absurdos que se presencia numa igreja. Mas naquele parque estava presente um Ser, se se pode empregar tal palavra, no qual todas as coisas viviam e agiam. As pernas me tremiam, forçando-me a sentar-me novamente, recostado numa árvore. O tronco era uma entidade viva como eu, e eu fazia parte daquela árvore, daquele Ser, do mundo. Devo ter desmaiado. Aquilo fora excessivo para mim: as cores intensas e vivas, as folhas, as pedras, as flores, a incrível beleza de todas as coisas. E, por sobre tudo aquilo, a benção de..."
"Quando tornei a mim já era nado o sol. Em geral, levo uns vinte minutos, a pé, até o parque; mas já fazia quase duas horas que eu saíra de casa. Fisicamente, sentia-me sem forças para voltar a pé; e, assim, deixei-me ficar ali, sentado, reunindo as forças e sem ousar pensar. Ao voltar para casa, lentamente, levava comigo, toda inteira, aquela experiência; durou ela dois dias e, tão subitamente como viera, desapareceu. Começou então o meu tormento. Durante uma semana inteira não cheguei, sequer, às proximidades do meu escritório. Queria de volta aquela experiência extraordinária, viva, queria tornar a viver, e para sempre, naquele mundo beatífico. Tudo isso aconteceu há dois anos. Andei pensando seriamente em ir-me para um recanto solitário do mundo, mas o coração me dizia que não a recuperaria dessa maneira. nenhum mosteiro pode oferecer-me aquela experiência; não a encontrarei em nenhuma igreja cheia de velas acesas e onde só nos oferecem a morte e a escuridão. Pensei em partir para a Índia, mas abandonei também tal idéia. Experimentei então uma certa droga; ela me fez mais vívidas as coisas, etc., mas não é de narcóticos que eu preciso. Isso é querer comprar muito barato o "experimentar"; e o que se tem é uma ilusão e não uma coisa real". 
"Aqui estou, pois", concluiu. "Tudo eu daria, minha vida e todos os meus haveres, para viver de novo naquele mundo. Que devo fazer?"
Ele veio a você, sem você o ter chamado, senhor. Você nunca o procurou. Enquanto você estiver procurando, não o terá nunca. Justamente o desejo de tornar a viver aquele estado extático, está impedindo a vinda do novo, a experiência nova daquela suprema felicidade. Veja o que aconteceu: você teve aquela experiência e está vivendo agora da lembrança morta de ontem. "O que foi" está impedindo a vinda do novo.
"Você quer dizer que devo pôr fora e esquecer tudo o que foi e ir arrastando de dia em dia minha insignificante existência, interiormente esfomeado?"
Se você não continuar a relembrar e a pedir mais — o que constitui um verdadeiro esforço — será então possível que aquela mesma coisa que escapa inteiramente ao nosso controle, atue por sua vontade própria. A avidez, mesmo com um alvo sublime, só pode gerar sofrimento; a ânsia de mais abre a porta do desejo. Aquela bem-aventurança não pode ser comprada com nenhum sacrifício, nenhuma virtude, e nenhuma droga. Ela não é uma recompensa, um resultado. Vem espontaneamente; não a busque. 
"Mas aquela experiencia foi real, veio da esfera do Sublime?"
Sempre queremos que outra pessoa confirme um fato ocorrido, nos dê certeza a respeito dele, para ficarmos abrigados nesta certeza. Tornar-se certo ou seguro em relação ao que foi, ainda que tenha sido o Real, significa fortalecer o irreal e gerar a ilusão. Trazer para o presente o que passou — agradável ou desagradável — é fechar a porta ao Real. A Realidade não tem continuidade. Ela existe momento por momento; é atemporal, imensurável.

Krishnamurti - Reflexões sobre a vida

A pessoa tem que se apostar toda

A verdade é um desafio, o maior que existe. É um desafio para inquirir, é um desafio para buscar e é um desafio para ser. Não é alguma coisa que você vai possuir algum dia – é uma coisa que você tem que se tornar.

E, de fato, você só pode se tornar aquilo que você já é, você só pode se tornar o seu ser.

O desafio da verdade é o desafio do seu próprio núcleo mais interno, o desafio de chegar em casa, o desafio de voltar ao centro, o desafio de reconhecer a si mesmo, o desafio de conhecer, de encontrar a si mesmo.

É árduo. Olhar-se de frente é árduo – porque investimos demais na nossa ignorância; apostamos demais na nossa autoignorância. Então, o autoconhecimento começa a se tomar muito, muito difícil. Assim, todos são chamados, mas apenas uns poucos ouvem o chamado.

E daqueles poucos que ouvem o chamado, muitos desses o interpretam mal, iludem-se a si próprios. Aqueles que ouvem da maneira certa, mesmo eles não persistem muito tempo. Assim, muitos são chamados mas muitos poucos chegam.

De fato, todo mundo é chamado. O desafio de Deus é para todos; é um convite aberto. Você está aqui para este desafio – para aceitá-lo, para passar através do fogo, para ser purificado pelo fogo.

Mas é um jogo de risco; a pessoa tem que se apostar toda. E esta é a ironia: de que quando você não tem nada, tem muito medo de apostar. A ironia... Quando você tem, tem a coragem de apostar também.

Esta é minha experiência de todo dia: sempre que vejo alguém que tem alguma coisa, ele está pronto para se entregar, e sempre que cruzo com uma pessoa que não tem nada, ela tem muito medo de se entregar.

Isso é muito misterioso. Quem não tem nada, tem muito medo de se entregar – talvez tenha medo de que, se ele se entregar, encontrará o seu estado de nada. Se entregar as suas defesas, conhecerá o seu vazio interior, a sua pobreza. É melhor fingir que se é rico e nunca olhar para dentro. É melhor continuar a sonhar: "Eu tenho muito, como posso me entregar?"

Mas esta é minha experiência, e nunca encontrei nenhuma exceção; esta parece ser a regra: aqueles que têm, estão prontos para se entregar, eles não têm medo. E Jesus dizia: "Àqueles que têm, lhes será dado mais, e àqueles que não têm, mesmo isso lhes será tirado."

Quando você tem, tem a coragem de apostar. E quando você aposta, torna-se capaz de obter mais. E quando aposta tudo, incondicionalmente, totalmente, somente então se torna capaz de receber o presente de Deus. Então, Cristo nasce em você.

Quando você aposta tudo, Cristo nasce em você. Quando você passa pela crucificação, quando você é crucificado, há a ressurreição.

Osho, em "O Caminho do Amor: Discursos Sobre as Canções de Kabir"

9 de agosto de 2012

Teorias e especulações nada significam diante do que é


18 de agosto de 1961

Chovera quase toda a noite e esfriara muito; caíra neve sobre os montes e colinas. Soprava um vento cortante. Os prados verdes, de um verde surpreendente, estavam extraordinariamente brilhantes. E choveu também praticamente todo o dia e, somente ao entardecer, começou a clarear e o sol despontou entre as montanhas. Estávamos seguindo por um caminho que ia de aldeia a aldeia, caminho que circundava fazendas entre esplêndidas campinas verdejantes. Os postes que sustinham os pesados cabos de eletricidade erguiam-se de forma impressionante contra o céu do entardecer e era belo, havia força, quando se admirava aquelas imponentes estruturas de aço contra as nuvens que passavam céleres. Ao cruzarmos uma ponte de madeira, vimos o riacho transbordando de tanta chuva; ele corria depressa com a força e a energia que só os riachos das montanhas têm. Ao olharmos o riacho de cima abaixo, contido entre barrancos firmes de pedras e árvores, nos conscientizamos do movimento do tempo: passado, presente, futuro. A ponte era o presente e toda a vida passava e vivia através do presente.

Mas, além de tudo isso, existia ao longo daquela senda lamacenta e varrida pela chuva, uma outra coisa, um mundo que não poderia jamais ser alcançado pelo pensamento, pelas atividades e pelos eternos pesares do ser humano. Esse mundo não resultava nem de esperança nem de fé. Não estávamos plenamente conscientes dele, naquele momento, pois havia muito a observar, sentir e cheirar: as nuvens, o céu pálido azul das montanhas, o sol no meio delas e a luz do entardecer pairando sobre o campo iluminado, e ainda o perfume dos currais e das flores escarlates ao redor das casas das fazendas. Este outro mundo estava lá cobrindo tudo, sem deixar nada de fora e quando nos deitamos, ele chegou de mansinho, enchendo nossas mentes e corações. Ficamos então conscientes de sua beleza sutil, de seu amor e de sua paixão. Não amor entronizado nas imagens, evocado nos símbolos, nos quadros e nas palavras, nem o que se encarapuça na inveja e no ciúme, mas o que está livre do pensamento, do sentimento, como um movimento em curva, perene. Sua beleza participa do auto-abandono da paixão. Não existe paixão por essa beleza se não houver austeridade. Austeridade não é um produto da mente, cuidadosamente alcançada à custa de sacrifícios, supressão e disciplina. Tudo isso precisa acabar naturalmente, pois, para essa outra coisa, não tem sentido. Ela foi se infiltrando, com sua incomensurável, desmedida riqueza. Este amor não tinha nem centro nem periferia e era tão completo, tão invulnerável que nele não havia sombra nem jamais possibilidade de destruição.

Sempre olhamos de fora para dentro; partindo do conhecimento prosseguimos rumo a novos conhecimentos, sempre acrescentando, sendo que no caso, a própria subtração é uma outra forma de adição. E nossa consciência é composta de milhares de lembranças e de reconhecimentos, estando ciente do farfalhar das folhas, da flor, do transeunte, da criança que corre pelos campos; ciente da pedra, do riacho, da luminosa flor vermelha, do cheiro ruim de um chiqueiro. A partir dessas lembranças e reconhecimentos, a partir dessa reações externas, tentamos nos conscientizar dos recessos interiores, dos motivos e necessidades profundas, mergulhando mais e mais nas vastas profundezas da mente. Todo esse processo de desafios e respostas, de experimentar e reconhecer as atividades claras e ocultas, tudo isso é consciência vinculada ao tempo.

A taça não é só forma, cor, desenho, mas também o vazio dentro dela. A taça é o vazio contido dentro da forma; sem esse vazio não existiria nem taça, nem forma. Reconhecemos a consciência por outros indícios, por suas limitações, em altura e profundidade, de pensamento e sentimento. Mas tudo isso constitui a forma externa da consciência – a partir do exterior procuramos atingir o interior, do conhecido sondamos, esperando encontrar o desconhecido. É possível sondar do interior para o exterior? O aparelho que sonda de fora para dentro, já conhecemos, mas existe um aparelho que parta do desconhecido para o conhecido? Existe? E como pode existir? Não pode existir. Se existe, ele é reconhecível e sendo reconhecível pertence ao campo de conhecido. Essa estranha benção chega quando quer, mas como cada visita ocorre, bem lá no fundo, uma transformação: tudo muda.

Krshnamurti – Sobre Deus

Um caminho sem caminho para uma alquimia psíquica

Reunião pelo Paltalk na noite de 09/08/2012

Quem responderá, totalmente liberto de mecanismos defesa, de forma minuciosa e destemida, as 35 perguntas que constam de nossa experiência sobre o limitante, fragmentador e separatista processo do pensar condicionado? Quem demonstrará um real interesse em meditar com seriedade sobre a natureza dos passos que foram dados ao ponto de se relacionar estas questões?
Antes de tudo é preciso tempo e, pode alguém que é prisioneiro do tempo, ter tempo para questionar o que está fazendo com a qualidade do seu tempo, ao ponto de se interessar pelo revelar de algo que se encontra fora dos limites do tempo?
Para responder essas perguntas é preciso observar o que busca o ser humano, que de humano, nada tem e, que, em sua grande maioria, vive confinado num processo inconsciente de descontentamento o qual não consegue perceber  por causa dos vários mecanismos de fuga; como nas palavras de Gui Tesla, "enquanto nossas verdadeiras necessidades afundam no mar do esquecimento, o povo se mantêm firme, sustentando seus próprios meios de alienação". Por estar sempre insatisfeito e descontente, sem se aperceber que isso é um movimento interno, vive o homem numa inconsequente busca externa por aquilo que denomina como "bens de consumo", com os quais acredita conseguir satisfazer sua não questionada necessidade de segurança psicológica, respeitabilidade social e senso de pertencer. Por nunca em sua vida ter se deparado com um processo de genuína educação psíquica, profundamente libertária e, portanto, potencializadora de sua inteligência original, muito ao contrário, ter sido sistematicamente exposto a um processo de formatação em série, sustentado por antigas crenças e tradições, nunca se questiona o homem quanto a realidade daquilo que lhe foi ensinado a ver como sendo um "bem" duradouro. Mas, o que é um "bem"? Segundo o dicionário, "bem" é a qualidade atribuída a ações e obras humanas, e que lhes confere um caráter moral. Mas, austeridade, virtude, felicidade e ventura, podem ser conseguidas quando se busca ser favorecido, beneficiado, obter vantagens e proveitos pessoais, sem levar em conta o bem-estar comum do coletivo? Em geral, o que se vê em nosso acelerado e mecânico cotidiano — tido por quase todos como normal, como uma vida de sucesso — é a conquista e manutenção de privilégios pessoais, profundamente separatistas, os quais superam em muito aquilo que deveria ser de direito comum. E, enquanto acredita o homem que pode saciar através de valores finitos sua perene insatisfação criada pelo seu mental condicionado — por mentes dele totalmente desconhecidas —,  como pode ele, diante de tamanho desconforto gerado por tais ânsias, despertar para a observação de valores perenes? E, é nessa inversão de valores que, progressivamente — e por vezes de forma totalmente irreparável —, desvaloriza o homem, em grande parte de forma inconsciente e inconsequente, sua saúde psíquica, emocional, física e consciencial.
Para que o homem possa, com autêntica seriedade — esta expressa pela capacidade de uma escuta atenta, isenta de qualquer tipo de comparação ou medição —, se deparar com o novo paradigma que se apresenta no conteúdo dos textos, áudios e vídeos que através deste blog procuramos compartilhar, antes de tudo, precisa ele ter vivenciado o deserto do real no que diz respeito a sua busca de satisfação interna através de acúmulo de descartáveis "bens de consumo", em "bens de transitório valor econômico", valor esse que, por não estar em seu controle, torna-se fonte de constante insegurança. Sem que ocorra um primeiro "choque psíquico" que aponte para esse primeiro despertar referente a ilusão da identificação com os falsos e transitórios valores da matéria, torna-se impossível o contato com o "a-b-c psíquico", torna-se impossível a iniciação de uma psíquica educação.
Uma vez tido o homem esse primeiro e estruturante choque psíquico, inicialmente, começa ele a buscar — ainda na ilusão do externo, através de consolidados sistemas de crença organizadas locais, erroneamente tidos por religião — respostas para seu constante estado de insatisfação, tédio e falta de sentido existencial. Inicia então, através do acolhimento de bom grado à novos e momentaneamente necessários condicionamentos, uma peregrinação desilusória — isto desde que não aborte seu processo de recentramento através da droga da "respeitabilidadeda autoridade espiritual"; onde há "autoridade", inevitavelmente haverá o exercício do orgulho, da falta de modéstia e do abuso do poder. Essa respeitabilidade adquirida pela auto-aceitação da postura de autoridade espiritual, mostra-se uma grande pedra de tropeço no caminho da descoberta daquele "anônimo algo mais" que possa por fim a eterna busca do homem; busca essa que, em última análise, tem por essência, a descoberta do que costumamos chamar de "a verdadeira liberdade do espírito humano", ou se preferir, a descoberta de um estado de satisfação infinita, dotado de felicidade, liberdade e senso de comunhão consigo mesmo, com os demais seres humanos e com a natureza da qual é parte integrante. Caso consiga ele, superar a mórbida tendência à estagnação resultante da "venda" da respeitabilidade espiritual — venda esta que impede a visão de novos paradigmas que apontam para um estado de consciência mais "madura", um novo choquepsíquico se apresenta diante do estado de solidão psicológica que esse novo poder de visão lhe faculta, o qual chamamos de "a experiência do desertodo real".
Diante da instalação desse deserto, começa o homem a caminhar pelo que convencionou-se chamar de a trilha menos percorrida, o caminho do herói, a jornada do peregrino, caminhar este a qual costumamos chamar de o ingresso numa "carreira solo psíquica". Aqui, passa o homem a ser um grande frequentador das megalivrarias e sebos, numa constante busca pelas estantes de autoajuda, espiritualidade, filosofia e esoterismo, atrás das obras literárias daqueles homens e mulheres que ousaram abrir mão do respeito à tradição em nome da busca do amor pela verdade, pelo inusitado e que, nessa ousadia, acabaram "se deparando com o certo" e, para nossa sorte — desde que vistos tão somente como setas orientadoras a serem deixadas pelo caminho —, nos brindando com suas observações referentes a busca de respostas pelo sentido da existência humana. Este é, sem dúvida alguma, um momento extremamente fecundo, pois, o subir nos ombros desses homens e mulheres que "se depararam com o certo", acaba nos brindando com um olhar de longo alcance, infinitamente superior ao limitadíssimo olhar da inconsciência coletiva. Aqui, o grande perigo se encontra numa outra forma mórbida de tendência estagnante, a qual se caracteriza pelo exercício de um "ácido, amargo e preconceituoso" olhar separatista, sempre exteriorizado para o sonâmbulo e decadente comportamento social, olhar este que acaba se mostrando como outra grande pedra de tropeço, a qual impede o alcance do reconhecimento do único inimigo oculto a ser enfrentado: seu próprio poderoso, orgulhoso e imodesto ego, o qual lhe impede a percepção da presença, da consciência real do que é. Esse separatista, ácido e amargo olhar, resultante do acúmulo de conhecimento de segunda mão, colhido ao longo de décadas pela filiação em várias instituições e no conhecimento livresco, mantém o homem estagnado em outra forma de respeitabilidade autoritária, esta, formada pelo enorme "currículo de suas experiências passadas" mais  o acúmulo de suas incertas certezas emprestadas.
Há também aquele que, em meio de sua bem disfarçada confusão — esta causada pelo exercício de uma mente hermeticamente fechada —, deixa-se afundar nas areias movediças do escapismo místico estratosférico de "mil e uma dimensões", escapismo esse que lhe impede de fazer frente à única coisa necessária: a compreensão de seu sofrimento resultante de sua identificação mental, a qual lhe impede de saber o que é o genuíno amor e compaixão, aqui e agora, nesta dimensão, pela qual perambula — visivelmente para aqueles que se encontram um pouco mais despertos —, de forma mecanicamente, totalmente alienado de sua natureza real, ao longo de uma existência sem vida. No entanto, — talvez por uma ação da graça — uma vez compreendido o que estes homens e mulheres que se depararam com o certo, tentaram deixar nas entrelinhas de seus textos; se compreendido que tudo que nos deixaram aponta tão somente para o "autoconhecimento" e para o "autoenfrentamento" — sem qualquer tipo de escolha ou fuga —, inevitavelmente, se depara o homem com um enorme e fecundo deserto existencial, onde se dá a amarga, porém libertária consciência de que todo seu conhecimento, seja ele proveniente de suas próprias experiências passadas ou do acúmulo da indevida apropriação do conhecimento alheio, não lhe é capaz de brindar com a sabedoria que aponta para o frescor da descoberta da "verdadeira natureza humana", natureza esta, dotada com liberdade, felicidade, integridade e unidade com tudo aquilo que é.
De fato, não é nada fácil fazer frente à este doloroso deserto existencial e, não raro, muitos são aqueles que, em momentos de delírio, resultante de inconfessáveis ansiedades, medos e desejos não reorientados, decidem optar pelo isolamento neurótico ou pela fuga ao ajustamento servil ao que lhe é conhecido, mesmo que já devidamente visto como sendo algo profundamente insatisfatório. Poucos são aqueles que conseguem ser fiéis e fazer frente às "dores de parto de um novo homem", dores estas que se fazem sentir através do tédio, da insatisfação e do total descontentamento diante da idéia de possibilidade de um ajustamento forçado ao antigo e desinteligente modo de existir baseado na sustentação de um mundo de imagens que não traduzem o frescor do real. Os que são fiéis às "dores de parto" — sem recorrer aos antigos ou novos sistemas de fuga — em seu devido tempo, vivenciam aquilo que podemos chamar de uma genuína, poderosa e intransferível "experiência religiosa", experiência essa através da qual, as sementes de sua integridade pessoal, até então adormecidas, encontram o terreno fértil da "prontificação", onde são capazes de lançar seus frutos, entre eles, a manifestação de um estado de unidade entre mente e coração, estes, agora guiados por uma consciência dotada de uma inefável inteligência amorosa, profundamente criativa, abarcante e dotada de genuína compaixão. Podemos afirmar sem a menor sombra de dúvida que, a capacidade de fazer frente às dores resultantes da experiência deserto, funciona como um portal que leva o homem do irreal ao Real, portal este que, em última análise, separa os psicologicamente adultos, dos adolescentes. Só aquele que consegue atravessar esse portal é capaz descobrir uma nova maneira de estar na vida de relação, com uma nova e atenta maneira de escutar, a qual lhe brinda com um novo e contagiante som em sua fala, uma inefável e poderosa presença em sua presença, quando diante de outros, presente.
Parece ser somente quando, diante desta poderosa experiência do deserto, que o homem consegue se aperceber da natureza exata, do "fator X" de toda forma de manifestação de padrões de comportamento obsessivo compulsivo que, uma vez com eles plenamente identificado, alimenta toda forma reativa produtora de seu conflito e sofrimento; só aqui se faz presente a "manifestação relâmpago" de um estado de consciência diante do incessante, mecânico, acelerado e autômato fluxo do pensamento, com sua cadeia de imagens e diálogos na ponte do tempo psicológico — passado e futuro — ponte esta que lhe impede o desfrute de uma vivência holística e qualitativa do Agora. No deserto do real, começa o homem, pelo estado de presença, a meditar, a perceber, a observar e a discernir sua impotência diante de seu herdado e nefasto mecânico processo de pensar, o qual lhe mantém numa constante produção de medos, desejos e ansiedades que, uma vez com eles identificados, resultam sempre num agravante estado de insatisfação diante dos resultados que se apresentam, resultados estes que sustentam um enclausurante círculo vicioso que impossibilita a manifestação de um estado de ser dotado de genuína inteligência criativa, amorosidade e compaixão, os quais apontam para a verdadeira responsabilidade social, manifesta pelo desinteressado compartilhar de um processo de educação psíquica e consciencial, qualitativa e visivelmente, libertária.

nj.ro@hotmail.com

1 de agosto de 2012

Quando o pensamento cessa

É estranha a importância que damos à palavra impressa, aos chamados livros sagrados. Os estudiosos, como os leigos, são aparelhos que reproduzem sons gravados; eles continuam repetindo as gravações por mais que elas possam ser alteradas com freqüência. Estão interessados em conhecimento e não na experiênciação. Ele é um impedimento à experienciação. Mas é um abrigo seguro, a preservação de uns poucos; e como os ignorantes ficam impressionados com o conhecimento, o conhecedor é respeitado e reverenciado. O conhecimento é um vício, como a bebida alcoólica; ele não traz entendimento. O conhecimento pode ser ensinado, mas não a sabedoria; deve haver libertação do conhecimento para a chegada da sabedoria. O conhecimento não é moeda de compra da sabedoria; mas o homem que entrou no refúgio do conhecimento não se arrisca a sair, pois a palavra alimenta seu pensamento e ele fica gratificado com o pensar, que é um impedimento para o experienciar; e não há sabedoria sem experienciar. O conhecimento, a idéia e a crença atrapalham a sabedoria.

Uma mente ocupada não é livre, espontânea, e somente na espontaneidade pode haver descoberta. Uma mente ocupada está fechada em si mesma; é inacessível, não vulnerável, e nisso está sua segurança. O pensamento, por sua própria estrutura, é isolador; ele não pode se tornar vulnerável. O pensamento não pode ser espontâneo, ele jamais pode ser livre. O pensamento é a continuação do passado e aquilo que continua não pode ser livre. Só existe liberdade naquilo que tem fim.

A mente ocupada cria aquilo com que ela está trabalhando – pode fabricar o carro de bois ou o avião a jato. Nós podemos pensar que somos estúpidos, e somos estúpidos. Podemos pensar que somos Deus, e somos nossa própria concepção: “Eu sou Esse”.

“Mas certamente, é melhor estar ocupado com as coisas de Deus do que com as coisas do mundo, não é?”
O que pensamos, somos; mas é o entendimento do processo do pensamento que importa, não o que pensamos. Se pensamos sobre Deus ou sobre a bebida, não importa; cada um tem seu efeito particular; mas em ambos os casos o pensamento está ocupado com sua própria projeção. Idéias, ideais, metas e assim por diante são, todas, projeções ou extensões do pensamento. Estar ocupado com as próprias projeções, em qualquer nível, é cultuar o Eu. O Eu, com um “E” maiúsculo, é ainda a projeção do pensamento. Seja o que for que ocupe o pensamento, é o que é; e o que é, nada mais é do que pensamento. Assim, é importante entender o processo do pensamento.

O pensamento é a reação ao desafio, não e? Sem desafio não há pensamento. O processo de desafio e reação é experiência; e experiência verbalizada é pensamento. A experiência não é somente do passado, mas também do passado em combinação com o presente; é o consciente, assim como o oculto. Esse resíduo de experiência é memória, influencia; e reação da memória, do passado, é o pensamento.

“Mas isso é tudo que existe no pensamento? Não existe maior profundidade no pensamento do que a mera reação da memória?”
O pensamento pode se colocar em diferentes níveis, e o faz, o estúpido e o profundo, o nobre e o desprezível; mas ainda é pensamento, não é? O Deus do pensamento ainda é da mente, da palavra. O pensamento de Deus não é Deus, é meramente a reação da memória. A memória é duradoura, e portanto pode parecer profunda; mas por sua própria estrutura ela nunca poderá ser profunda. A memória pode estar oculta, fora da visão imediata, mas isso não a torna profunda. O pensamento nunca pode ser profundo ou nada além do que o Eu é. O pensamento pode atribuir-se maior valor, mas continua a ser pensamento. Quando a mente está ocupada com sua própria projeção, não foi além do pensamento, somente assumiu um novo papel, uma nova pose; sob o disfarce, ainda é pensamento.

“Mas como pode alguém ir além do pensamento?”
Esse não é o ponto, é? Alguém não pode ir além do pensamento, pois o “alguém”, o criador do esforço, é resultado do pensamento. Na descoberta do processo do pensamento, que é autoconhecimento, a verdade do que é acaba com o processo do pensamento. A verdade do que é não pode ser encontrada em qualquer livro, antigo ou moderno. O que é encontrado é a palavra, mas não a verdade?”

“Então, como o individuo encontra a verdade?”
O individuo não a encontra. O esforço de encontrar a verdade produz um fim projetado; e esse fim não é a verdade. O resultado não é a verdade; o resultado é a continuação do pensamento, estendido ou projetado. Somente quando o pensamento termina existe a verdade. Não há o fim do pensamento pela compulsão, pela disciplina, por qualquer forma de resistência. Ouvir a historia do que é produz sua própria libertação. É a verdade que liberta, não o esforço para ser livre.

Krishnamurti – Comentários sobre o viver

Reunião: Admitindo a impotência perante o fluxo do pensamento condicionado

Parte 1
Por problemas com o microfone, a gravação da parte 2 saiu baixa, com ruído e num
só canal, no entanto, a qualidade do conteúdo, supera em muito a qualidade do som.
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