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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

23 de outubro de 2012

O que é essa estranha coisa chamada amor?



Dou-me conta de que o amor não pode existir quando há ciúmes; o amor não pode existir quando há apego. Bem, agora, é possível para mim estar livre do ciúmes e do apego? Dou-me conta de que não amo. Isso é um fato. Não vou enganar a mim mesmo: não vou fingir com minha mulher que a amo. Não sei o que é o amor. Porém, se sei que sou ciumento e também sei muito bem que estou terrivelmente apegado a ela e que no apego há temor, ciúmes, ansiedade há um sentido de dependência. Não gosto de depender, porém, dependo porque me sinto só; me pressionam por todos os lados, no serviço, na fabrica, e venho para minha casa e quero sentir-me cômodo e em companhia, desejo escapar de mim mesmo. Agora me pergunto: Como hei de me libertar deste apego? Tomo isso só como um exemplo.

Em primeiro lugar, quero safar-me do problema. Não sei como vão terminar as coisas com minha mulher. Quando estiver realmente desapegado dela, minha relação com ela pode se modificar. Ela poderia apegar-se a mim e eu poderia não estar apegado a ela nem a nenhuma outra mulher. Porém, vou investigar. Portanto, não escaparei do que imagino poderia ser a consequência de estar totalmente livre de apego. Não sei o que é o amor, porém, vejo muito claramente, definidamente, sem nenhuma dúvida, que o apego por minha mulher significa ciúmes, possessão, medo, ansiedade; e desejo libertar-me de tudo isso. De modo que começo a investigar; busco um método e caio preso num sistema. Certo guru disse: "Lhe ajudarei a desapegar-se, faça isto e isto, pratica isto e aquilo". Aceito o que ele disse porque vejo a importância de estar livre, e ele me promete que se faço o que aconselha serei recompensado. Porém, vejo que desse modo estou buscando uma recompensa. Vejo o tonto que sou: quero ser livre e me apego a uma recompensa.

Não desejo estar apegado e, não obstante, me encontro apegado a ideia de que alguém ou algum livro ou algum método me recompensará livrando-me do apego. Por conseguinte, a recompensa se converte em um apego. Assim que digo: "Olhe para o que tem feito; seja cuidadoso, não caia preso nessa armadilha". Seja que se trata de uma mulher, de um método ou de uma ideia, isso segue sendo apego. Agora estou muito alerta porque tenho aprendido algo, ou seja, no trocar o apego por alguma outra coisa, segue sendo apego.

Pergunto-me: "Que devo fazer para libertar-me do apego?" Qual é o motivo para querer estar livre do apego? Não é que anseio alcançar um estado onde não há apego nem temor nem nada disso? E subitamente me dou conta de que o motivo imprime uma direção e que essa direção ditará minha liberdade. Por que ter um motivo? O que é um motivo? O motivo é uma esperança ou um desejo de mudar algo. Vejo que estou apegado a um motivo. Não só minha esposa, não só minha ideia, não só o método, senão que também o motivo se converteu em meu apego! De modo que todo o tempo estou funcionando dentro do campo do apego: a esposa, o método e o motivo de mudar algo no futuro. Estou apegado a tudo isto. Vejo que é algo tremendamente complexo; não havia me dado conta de que estar livre do apego implica todas estas coisas. Agora o vejo tão claramente como vejo num mapa as estradas principais, as estradas secundárias e os povoados; o vejo com muita clareza. Então digo-me: "Está bem, é possível para mim estar livre  do grande apego que sinto por minha esposa e também estar livre da recompensa que penso que vou obter, assim como de meu motivo?" Estou apegado a tudo isto. Por que? É por que em mim mesmo sou insuficiente? É por que me sinto muito, muito só e por isso busco escapar da sensação de isolamento recorrendo a uma mulher, a uma idéia, um motivo, como se estivesse que aferrar-me a algo? Vejo que é assim, que me sinto só e que, mediante ao apego, escapo através de alguma coisa fugindo dessa sensação de extraordinário isolamento.

Estou, pois, interessado em compreender a razão do por que me sinto só, por que vejo que isso é o que faz com que me apegue. Essa solidão me tem obrigado a escapar, mediante o apego, para isto ou aquilo, e vejo que, enquanto prosseguir esse sentimento, a consequência será sempre esta. O que significa sentir-se só? Como ocorre? É algo instintivo, herdado, ou se origina em minha atividade diária? Se é um instinto, se é herdado, então forma parte de meu destino; não tenho culpa. Porém, como não aceito isto, o questiono e permaneço com a pergunta. Observo e não trato de encontrar uma resposta intelectual. Não trato de dizer para a solidão o que é e o que deveria fazer; observo para que ela me diga. Há um estado de atenta vigilância a fim de que a solidão se revela por si mesma. Não se revelará se fujo, se tenho medo, se a resisto. Portanto, a observo. A observo de modo que não interfira nenhum pensamento. A observação é muito mais importante que a intervenção do pensamento. E, graças a que toda minha energia se interessa na observação dessa solidão, o pensamento não intervém em absoluto. A mente é desafiada e tem que responder. Devido ao desafio está em crise. Numa crise você tem grande energia, e essa energia permanece sem ser interferida pelo pensamento. Este é um desafio a que devo responder.

Coloquei-me a dialogar comigo mesmo. Perguntei-me o que é essa coisa estranha chamada amor; todos falam dela, escrevem acerca dela; lhe fazem todos os poemas românticos, as pinturas, o sexo e todas as outras áreas que abarca. Pergunto: existe uma coisa como o amor? Vejo que não existe quando há ciúme, ódio, medo. De modo que já não me ocupo do amor; me interesso em "o que é", em meu medo, em meu apego. Por que estou apegado? Vejo que uma das razões — não digo que seja toda a razão — é que me sinto desesperadamente só, isolado. Quanto mais envelheço, mais isolado vou me sentindo. Por conseguinte, observo isso. Este é um desafio que me impulsiona a descobri e, devido a que é um desafio, toda a energia se concentra ai para responder. É algo simples. Se há uma catástrofe, um acidente ou o que for, isso é um desafio e tenho a energia para afrontá-lo. Não tenho que perguntar: "Como obtenho a energia?" Quando a casa se queima tenho a energia para entrar em ação, uma energia extraordinária. Não me sento e digo: "Bem, tenho que mudar esta energia" e fico esperando; então vai ter queimado toda a casa.

Assim, pois, tenho esta energia tremenda para responder a pergunta: Por que existe este sentimento de solidão? Rejeitei idéias, suposições e teorias acerca de que se trata de algo herdado, instintivo. Tudo isso não significa nada para mim. A solidão é "o que é". Por que existe esta solidão que todo ser humano, se é de algum modo consciente, experimenta seja de maneira superficial ou mais profunda? Por que se manifesta? É por que a mente faz algo que ocasiona esta solidão? Recusei teorias como o instinto e a herança, e me pergunto: É a mente, o cérebro mesmo que produz este sentimento de solidão, este isolamento total? É o movimento do pensar que faz isto, ele que cria em minha vida cotidiana este sentido de isolamento? No serviço me isolo porque quero chegar a ser o executivo máximo; portanto, o pensamento trabalha todo o tempo isolando-se em si mesmo. Vejo que o pensamento opera permanentemente para fazer-se superior, que a mente mesma induz este isolamento com sua atividade.

Assim, que o problema é: por que o pensamento faz isto? É sua natureza trabalhar para si mesmo? É a natureza do pensar criar este isolamento? É a educação o que o origina; esta me dá uma carreira, certa especialização e, por conseguinte, isolamento. O pensamento, sendo fragmentário, limitado, estando atado ao tempo, cria este isolamento. Nessa limitação tem encontrado segurança dizendo: "Tenho uma profissão especial em minha vida, sou um professor; estou perfeitamente seguro". Em consequência, me interessa saber por que o pensamento faz isto. Está em sua natureza mesma agir assim? Qualquer cosia que faça o pensamento tem que ser limitada.

Então, o problema é: Pode o pensamento dar-se conta de que qualquer coisa que faz é limitada, fragmentaria e, em consequência, isoladora, e que tudo o que fará será sempre assim? Este é um ponto muito importante: pode o pensamento mesmo dar-se conta de suas próprias limitações? Ou sou eu o que lhe diz que é limitado? Vejo que é indispensável que se compreenda isto, já que é a verdadeira essência da questão. Se o próprio pensamento se dá conta de que é limitado, então não há resistência nem conflito; diz: "Isso é o que sou". Porém, se eu lhe digo que é limitado, estou me separando da limitação. Então, luto para superar a limitação; por conseguinte, há conflito e violência, não amor.

Então, o pensamento mesmo se dá conta de que é limitado? Tenho que descobri-lo. Isto é um desafio que enfrento. Por causa de que enfrento um desafio, tenho uma grande energia. Expressando de outra forma: dá-se conta a consciência de que seu conteúdo é ela mesma? Ou ouvi outro dizer: "A consciência é seu conteúdo; o conteúdo compõe a consciência". Portanto, digo: "sim, é assim". Vejo a diferença entre um e o outro? O segundo, criado pelo pensamento, é imposto pelo "eu". Se imponho algo sobre o pensamento, há conflito. É como um governo tirânico impondo-se sobre alguém, porém, aqui, esse governo é de minha própria criação.

Pergunto-me, pois: o pensamento tem se dado conta de suas limitações? Ou pretende ser algo extraordinário, nobre, divino? Isto é um disparate, porque o pensamento se baseia na memória. Vejo que tem que haver clareza acerca deste ponto, ou seja, que não há uma influência externa que se imponha sobre o pensamento dizendo que é limitado. Então, devido a que não há imposição, não há conflito; o pensamento compreende, simplesmente, que é limitado, dá-se conta de que qualquer coisa que faça — render culto a Deus, etc. — é limitada, vulgar, insignificante, ainda quando haja criado por toda a Europa maravilhosas catedrais onde pode adorar.

Descobri, pois, nesta conversação comigo mesmo, que a solidão é criada pelo pensamento. Agora o pensamento deu-se conta, por si mesmo, de que é limitado e que, portanto, não pode resolver o problema da solidão. Como não pode resolver o problema da solidão, existe a solidão? O pensar tem criado este sentimento de solidão, este vazio interno, por causa de que é limitado, fragmentário, de que está dividido; e quando se dá conta disto, a solidão não existe e, portanto, estou livre do apego. Não fiz nada; observei o apego e o que implica: a ganância, o medo, a solidão, tudo isso, e seguindo-lhe a pista, observando-o, não analisando-o senão simplesmente olhando, olhando e olhando, descobri que o pensamento tem feito tudo isto. O pensamento, por ser fragmentário, tem criado este apego. Quando se dá conta, o apego termina. Não houve nenhum esforço, porque tão logo há esforço, o conflito regressa novamente.

No amor não há apego; se há apego não há amor. Eliminou-se o fator principal mediante a negação do que o amor não é, mediante a negação do apego. Sei o que isso significa em minha vida cotidiana: não me lembrar de nada do que o meu vizinho, minha esposa ou minha noiva fizeram para me machucar; não me apegar a nenhuma imagem que o pensamento tenha criado com respeito a minha esposa, como tenha me intimidado, como tem me brindado com consolo, como tenho tido prazer sexual com ela, todas as distintas coisas de que o movimento do pensar tem elaborado imagens; o apego a essas imagens tem desaparecido.

E existem outros fatores. Devo examiná-los todos, passo a passo, um por um? Ou tudo isso desvaneceu-se? Devo examinar cuidadosamente, investigar — como tenho investigado o apego — o temor, o prazer e o desejo de consolo? Vejo que não tenho que passar pela investigação completa de todos estes diversos fatores; o vejo de uma só olhada, o entendi.

Por conseguinte, ao negar o que não é o amor, o amor existe. Não tenho que perguntar o que é o amor. Não tenho que correr atrás dele. Se corro atrás dele, isso não é amor, é uma recompensa. Havendo, pois, negado nessa investigação tudo o que o amor não é, havendo terminado com isso lenta e cuidadosamente, sem distorção nem ilusão alguma, então o outro está aí.

Krishnamurti - Um diálogo consigo mesmo - Brockwood Park, Inglaterra, 30 de agosto de 1977             
        
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