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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

4 de janeiro de 2013

Sobre o ficar-consigo-mesmo e ir fundo na inquietação


Um sentimento básico de nossa época parece-me ser a fragmentação  Muitas pessoas sentem-se internamente fragmentadas. Elas têm a impressão de serem puxadas de um lado a outro pelas muitas exigências impostas a elas, na profissão, na família, no sacerdó­cio, na comunidade política. Muitas vezes elas não sabem que papel representam. Trocam-no tantas vezes que nem sabem mais quem são verdadeiramente. Não têm mais tranquilidade interior. Quando voltam do trabalho, à noite, não conseguem desligar-se. A intranquilidade persegue-as até no sono. Em toda essa atividade infatigável elas não estão consigo mesmas. Não estão em contato com seu "eu" verdadeiro. São empurradas de um compromisso a outro. Sua alma não as acompanha mais. Não está onde o corpo precisa estar, para cumprir todas as suas obrigações.

Uma antiga história monacal fala dessa fragmentação: "O patriarca Poimen perguntou ao patriarca José: 'Diga-me como poderei tomar-me monge?' Ele respondeu: 'Se você quer encontrar a paz, em todos os lugares, então diga, em todas as suas ações: Eu - quem sou eu? E não julgue ninguém!"'

A palavra grega que designa monge, "monachos", às vezes é derivada de "monas = unidade, ser uno". Um homem jovem sente-se fragmentado. Ele quer voltar para si mesmo, para sua unidade, e encontrar a paz. Ele quer estar consigo mesmo, em todos os lugares. Poimen o aconselha a perguntar, em tudo o que fizer: "Eu - quem sou eu?" E procurar sua verdadeira identidade.

Quem é esse, que está agindo assim? Será que há apenas uma parte de mim no trabalho? Será que estou envolvido por inteiro? Há uma parte de mim em outro lugar? Na verdade, a pergunta de Poimen é a seguinte: "Como posso ser inteiro?" Como posso estar por inteiro naquilo que faço? Como posso viver como uma pessoa inteira, que sempre e em todos os lugares é una consigo mesma? Como posso encontrar minha unidade nas muitas coi­sas que faço e que muitas vezes me fragmentam? Além dessas perguntas, que se dirigem ao "eu" verdadeiro, passando pelos muitos papéis que representamos e pelas muitas máscaras que usamos, Poimen ainda exige que o jovem não julgue ninguém. Quando julgo, não estou comigo mesmo, mas com o outro. Por meio do julgamento que faço dos outros, desvio-me de mim mesmo. Poimen quer levar o interpelante a ficar com ele mesmo. Só assim ele descobrirá quem é na verdade. Só assim ele encontrará o caminho para sua unidade, para seu ser inteiro. Só assim ele será um monge.

Muitos sentem-se fragmentados porque descobrem em si facetas que não combinam com sua auto-imagem. Assustam-se diante de suas fantasias sádicas, de seus desejos masoquistas e de suas tendências destrutivas. Não sabem como reagir adequada­mente a suas facetas obscuras, se devem reprimi-las e abafá-las ou simplesmente fugir delas.

(...)


1. A akedia

O antigo monacato fala do fenômeno da fragmentação, sobretu­do na descrição da akedia. Normalmente akedia é traduzido por ausência de ânimo, ou indolência. Mas na verdade é a incapaci­dade de ser uno consigo mesmo, com o momento presente, com a própria situação de vida. Evagrius Ponticus descreve um monge que e assediado pelo demônio da akedia:

"Primeiro ele aparece para o monge, fazendo com que o sol, (fitando se movimenta, só o faça muito lentamente, e então o dia passa a ter a duração de no mínimo cinqüenta horas. O monge se sente impelido a olhar constantemente pela janela, a deixar a cela, a olhar cuidadosamente para o sol, para tentar saber o quanto ele ainda está distante da nona hora; a olhar para várias direções, para talvez ver um ou outro de seus irmãos deixar a cela. Lentamente o demônio faz com que no coração do monge surja um enorme ódio do local em que se encontra, de sua vida atual e também do trabalho que ele executa, ele (o demônio) faz o monge acreditar que o amor entre os irmãos está morto e que não há ninguém que lhe possa dar algum ânimo. Se, durante essa fase, alguém por acaso chega muito perto do monge, então o demônio utiliza a oportunidade para aprofundar ainda mais esse ódio. Ele consegue fazer o monge sentir um forte desejo de estar em outros lugares, onde este pode obter mais facilmente o que precisa para viver, onde é mais fácil encontrar trabalho, e onde existe uma promessa maior de sucesso " (Evagrius, 12).

A akedia dilacera-nos interiormente. Tornamo-nos insatisfeitos com nós mesmos, com o local em que vivemos, com as pessoas que convivem conosco, com o tempo que nos parece tão entediante, com o trabalho, com o modo de vida, com tudo.

Há uma rejeição de tudo o que nos cerca. Mas há, igualmente uma rejeição de nossa própria pessoa. Sentimo-nos insatisfeitos, mas também não sabemos o que queremos verdadeiramente. Rebelamo-nos contra tudo. Mas não temos um objetivo. Apegamo-nos a ilusões aleatórias. Não conseguimos usufruir o momento presente. Quando oramos, temos a impressão de que na verdade deveríamos estar trabalhando. Quando trabalhamos, tudo nos parece difícil. Sentimo-nos cansados, temos a impressão de trabalharmos excessivamente, de estarmos estressados. Mas quando resolvemos descansar, não sabemos o que fazer com o tempo livre. Ele nos parece entediante e inútil. Nunca estamos efetivamente no lugar em que nos encontramos naquele instante, e nunca vivenciamos o momento presente. Sempre estamos em outro lugar, e ao mesmo tempo em lugar nenhum. A akedia é a definição mais radical de fragmentação interna que pode acometer as pessoas. Ela não é apenas a doença típica dos monges, é sem dúvida também um fenômeno dos tempos atuais.

A fragmentação do homem de hoje não se mostra apenas, como em Paulo, na cisão entre vontade e ação, entre lei e pecado, mas sobretudo na cisão entre desejo e realidade. Por causa da akedia confrontamo-nos frequentemente com desejos irrealistas, ilusões infantis sobre a vida, expectativas exageradas. Exigimos tudo dos outros e ficamos zangados quando eles não nos possibilitam ter a vida que sonhamos. Mas os outros podem até se esforçar em realizar nossos desejos. Nunca o conseguirão. Pois nossos desejos são imensos, incomensuráveis. Neles é que nos abrigamos, fugindo da realidade deste mundo. Negamo-nos a dizer sim a nosso "ser" humano, com suas restrições e limitações. Achamos que podemos reivindicar tudo, infinitamente.

A sociedade, a Igreja, a família, a empresa, são como grandes mães, das quais sempre esperamos tudo. E são culpadas quando nos sentimos insatisfeitos. Nem percebemos como essa postura nos remete à postura de uma criança insatisfeita, que também não sabe o que quer. Ela só sabe que não quer aquilo que lhe oferecem.

Pascal Bruckner descreveu essa postura como típica de nossa sociedade. É a negação de se compatibilizar com a realidade. Queremos sempre mais. Temos a impressão de que a ciência e o estado só existem para satisfazer todos os nossos desejos: "Todos os dias exigimos, em todos os campos, um desenvolvimento mais veloz. A técnica alimenta em nós a religião da ganância, com ela o possível torna-se desejável e o desejável necessário. Merecemos o melhor. A indústria e a ciência acostumaram-nos a uma tal produtividade, que ficamos furiosos quando as descobertas se tornam mais raras, quando a satisfação que sentimos com sua concretização é obrigada a esperar. 'Isso é insuportável', clamamos - com a imensa raiva de uma criança temperamental que, diante de um brinquedo, bate o pé e grita: eu quero isso"' (Bruckner, 71s). Mas essa criança temperamental não sabe o que quer realmente. Está sempre insatisfeita. É imatura, nunca descobriu seu próprio eu. E sem a experiência de nosso próprio centro somos dilacerados pelos desejos, puxados de um lado a outro pelas impressões externas.

2. O ficar-consigo-mesmo

Como método de cura para a akediaEvagrius sugere aguentar firme, permanecer no próprio Kellion (pequena habitação do monge eremita). Precisamos permanecer com nós mesmos, para encontrarmos novamente nosso centro.

"Na hora da tentação você não deveria procurar pretextos mais ou menos fidedignos para deixar sua cela, mas permanecer decididamente dentro dela e ser paciente. Simplesmente aceite o que a tentação lhe traz. Sobretudo, encare de frente essa tentação da akedia, pois ela é a pior de todas, mas tem como resultado uma grande purificação da alma. Fugir desses conflitos ou espantá-los torna o espírito inábil, covarde e temeroso" (Evagrius, 28).

O que acontece quando permaneço na cela sem fazer alguma coisa determinada, sem orar, meditar ou ler alguma coisa? Milhares de pensamentos me acometem. Surgem sentimentos, lembranças, decepções, suposições, saudades. Às vezes aflora um caos de emoções. Se eu não fugir, mas aguentar firme, as emoções poderão lentamente se ordenar. Nesse caso a pergunta de Poimen é bastante útil: "Eu - quem sou eu?" Essa pergunta coloca os diversos pensamentos e sentimentos numa ordem, segundo sua relação com meu "eu" verdadeiro. Assim, muita coisa se revelará totalmente sem importância. Outras coisas vão ocupar minha atenção. Gradualmente chegarei a meu problema central. Qual é a questão fundamental de minha vida? Qual é meu anseio mais profundo  Em que momento vivo distante de minha verdade? Quem sou realmente? Como é essa imagem original, não falsificada, que Deus fez de mim? Não encontrarei uma resposta imediata para isso, a qualquer momento a pergunta pelo "eu" verdadeiro reaparecerá  Simplesmente estou aqui. Estou em meu centro. Estou em contato comigo mesmo, com o ser, com o mistério. Estou junto a Deus, diante de Deus e em Deus. E uma paz profunda me cerca. A presença amantíssima e curadora de Deus me envolve. Isso me basta. A fragmentação é suprimida. Tudo é uno.

Se eu me esquivar dos problemas, nunca encontrarei uma solução. Se eu ceder a minha fragmentação e me virar para cá ou para lá, serei cada vez mais dilacerado. Preciso aguentar tudo isso sozinho, por mais difícil que seja. Preciso ir ao fundo de minha inquietação. Então encontrarei as ilusões que criei sobre a vida, minhas pretensões exageradas e fantasias megalômanas infantis. E quando eu as reconheço e identifico como aquilo que são realmente — um pé atolado na infantilidade — então poderei reconciliar-me lentamente comigo mesmo e com minha situação. Se eu permanecer pacientemente comigo mesmo e aguentar, então as forças que estão se fragmentando em meu interior se unirão novamente, eu voltarei a ser uno e encontrarei de novo meu centro.

O ficar-consigo-mesmo é um caminho importante para reconciliarmos os opostos dentro de nós, para nos aguentarmos em nossa cisão. Evagrius descreve outros caminhos para nos livrarmos do domínio das paixões. A "apatheia" é um estado no qual as paixões não nos dominam mais, elas passam a nos servir, e se aquietam. Na "apatheia" posso lidar livremente com minhas paixões. Não fico mais amarrado a elas, dependente delas. Na verdade elas me levam à vida, e finalmente a Deus. Só quando alcanço essa liberdade interior, quando nada mais que vem de fora me domina, só então encontro meu "eu" verdadeiro. Evagrius diz que na "apa­theia" eu posso ver minha própria luz. Posso tomar consciência de meu cerne mais profundo. E ele é uma luz muito clara. A luz é para mim uma imagem do "eu", o cerne mais profundo do ser humano, no qual também mora Deus, a verdadeira luz.

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