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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

16 de fevereiro de 2013

É possível, pelo pensamento, descobrir-se uma harmônica maneira de viver?

Vós viveis fragmentariamente: no escritório sois diferentes do que sois em casa; tendes pensamentos “particulares” e pensamentos “públicos”. Assim, percebendo essa enorme separação e contradição existente entre os fragmentos, perguntamos se o pensamento pode uni-los, efetuar a integração de todos os elementos. É ele capaz de tanto?

Consequentemente, cumpre-nos investigar a natureza e estrutura do pensamento. Pode o pensamento, a atividade pensante, o processo intelectual de raciocinar, produzir uma vida harmoniosa? Para investigarmos isso, cumpre-nos investigar, examinar atentamente a natureza e estrutura da pensamento; isso significa que iremos examinar juntos o vosso pensar, não a descrição ou a explicação dada pelo orador, porquanto a descrição nunca é a coisa descrita e tampouco a explicação é a coisa explicada. Portanto, não nos deixemos enredar na explicação ou descrição, mas investiguemos juntos, verifiquemos juntos como o pensamento funciona e se ele é realmente capaz de produzir uma maneira de vida totalmente harmônica, não contraditória, completa em todas as ações. Isso é muito importante, porque, se desejamos um mundo totalmente transformado, um mundo sem corrupção, uma maneira de vida em si mesma significativa, temos de indagar se o pensamento é capaz de criar tal maneira de vida. E indagar, também, o que é o sofrimento, se ele pode findar, e o que é a dor, o medo, o amor, a morte.

(…) Cumpre, pois, investigar a sério a natureza do pensamento.

Que é pensar? Fazei a vós mesmos esta pergunta: Que é pensar? Temos de compreender o significado profundo do pensamento, porque nós vivemos pelo pensamento. Se fazemos qualquer coisa, ou a fazemos refletidamente, ou a fazemos mecanicamente, em conformidade com o padrão de ontem, a tradição. Temos, portanto, de ver claramente qual é a função do pensamento. Se vos observais mui atentamente, não descobris que o pensamento é reação da memória, sendo essa memória experiência, conhecimento? Se não tivésseis nenhum conhecimento, nenhuma experiência, nenhuma memória, não haveria pensar. Estaríeis vivendo num estado de amnésia. O pensamento, como vimos, é reação da memória, e a memória está condicionada pela cultura em que viveis, pela educação que recebestes e a propaganda religiosa que vos foi instalada; o pensamento é reação da memória, isto é, do saber e da experiência nela acumulados. Necessitamos do conhecimento, da memória, para acharmos o caminho de casa, para falarmos uns com os outros, mas o pensamento, sendo reação da memória, nunca é livre, é sempre velho.

E o pensamento — essa reação do “velho”, da memória — é capaz de descobrir uma maneira de viver totalmente harmônica e clara? Todavia, queremos descobri-la por meio do pensamento ; digo: “pensarei nisso a fundo e descobrirei a maneira de viver harmonicamente”. E, já que o pensamento é reação do passado, de nosso condicionamento, não tem nenhuma possibilidade de descobrir a maneira harmoniosa de viver. Estais entendendo? O pensamento não pode descobri-la e, entretanto, usamos o pensamento para descobri-la. Bem sabemos que o pensamento é necessário, para podermos voltar para casa, para ganharmos a vida, para fazermos qualquer coisa; num certo nível, ele é absolutamente necessário, mas, quando se trata de descobrir uma maneira de viver diferente da atual — que é de desarmonia — o pensamento se torna um empecilho.

Ao perceberdes esta verdade, que o pensamento, por mais racional e lógico, por mais são e claro que seja, é incapaz de descobrir aquela maneira de vida, qual o estado de vossa mente? Estais-me acompanhando? estais trabalhando com o orador, ou estais meramente ouvindo palavras e ideias? Compreendeis esta pergunta? espero estejais trabalhando com igual ardor e empenho, porque, do contrário, nada descobrireis. E nós, que vivemos neste mundo insano, temos de descobrir uma nova maneira de viver. Ora, se o pensamento é incapaz de descobri-la, e compreendemos isso como um fato verdadeiro e não como uma explicação verbal, qual é então o estado da mente, da vossa mente? Qual é o estado da mente quando percebe um fato verdadeiro?* Não me respondais, por favor. Nunca vos deixais entranhar de uma verdade;não “ficais com ela”, mas estais sempre prontos a saltar com palavras e explicações, sabendo muito bem que a explicação não é a coisa real.

Perguntamos,  pois: Qual é o estado da mente que percebe a necessidade do pensamento e percebe também que o pensamento, por mais que se esforce, não pode de nenhum modo produzir aquela beleza de uma vida totalmente harmônica? Esta é uma das coisas mais difíceis de transmitir, um dos assuntos mais difíceis de tratar, porque até agora só temos vivido de experiências alheias, sem percepção direta; temos medo da percepção direta. E, diante deste desafio, vossa tendência é fugir, refugiar-vos em palavras e explicações; mas cumpre por de lado todas as espécies de explicação. Assim, qual o estado da mente, isto é, qual a natureza da mente que percebe a verdade? Por ora, deixemos de lado este ponto, porque não há tempo para entrarmos em pormenores e há ainda assuntos a tratar. A ele voltaremos.

(…) Ante o nosso sofrimento, tratamos de fugir, e as palavras, as teorias, as explicações e crenças nos oferecem os desejados meios de fuga. Se morre meu filho, tenho uma dúzia de explicações. Fujo, por medo à solidão. E que acontece? Torno a adormecer. Mas, o sofrimento é uma espécie de desafio. Se “ficardes” com ele, completamente, sem fugir, sem “verbalizar”, sem nenhum movimento de pensamento, descobrireis toda a sua estrutura.

E cumpre-vos, também, descobri, por vós mesmo, se o medo pode terminar — não apenas o medo físico, mas também os temores internos, psicológicos.

Que é o medo? É ele produto do pensamento? Obviamente, o medo resulta do pensamento. Pensais numa certa coisa que, ontem ou no ano passado, vos causou dor, física ou de outra espécie, e sentis medo; é desse modo que o pensamento nutre o medo e lhe dá continuidade. O pensamento projeta, também, o medo no futuro: posso perder meu emprego, minha posição, meus prestígio, minha reputação. Compreendeis? O pensar tanto no passado como no futuro gera medo. Por conseguinte, perguntamos: pode o pensamento cessar?

E note-se, ainda, que o pensamento sustenta o prazer. O pensar no prazer que ontem experimentei, contemplando o pôr do Sol — tão maravilhoso, tão belo, tão estimulante, etc. — sustenta aquele prazer.

Temos, pois, o sofrimento, o medo, o prazer e a alegria.

A alegria difere do prazer? Não sei se alguma vez a conhecestes. A alegria “acontece”, vem subitamente. Mas, não se sabe como, o pensamento dela se apodera e a reduz a prazer; e, assim, dizeis: “Quero experimentar de novo aquela alegria”. O pensamento, pois, sustenta e nutre o prazer, o medo, e dá continuidade ao sofrimento.

E, por fim, há o medo da morte, o medo fundamental do homem. Dele trataremos mais tarde.

Agora, ao perceberdes que o pensamento perpetua o prazer e o medo, e que evitar o medo, mediante diferentes formas de fuga, deforma a mente e, por conseguinte, a torna incapaz de compreender de todo o medo — qual o estado de vossa mente ao perceberdes esta verdade? E qual o estado da mente que sabe quando o pensamento é necessário, quando deve ser empregado, logicamente, objetivamente, equilibradamente, e sabe também que o pensamento, que é reação do conhecimento, ou seja, do passado, se torna um obstáculo a uma maneira de viver isenta de contradição? Qual o estado de vossa mente quando dizeis: “Compreendo”? Ela está completamente vazia e em silêncio. Não é exato isso? Só se pode ver uma coisa bem claramente quando não há escolha. Havendo escolha, há confusão. Só a mente confusa escolhe, discrimina entre o essencial e o não essencial; mas o homem que vê com clareza não faz escolha.

Há, pois, uma ação que vem quando a mente está vazia de todo o movimento de pensamento, exceto aquele movimento que é necessário quando o pensamento deve funcionar. A mente é então capaz de dar atenção aos fatos da vida diária. Mas, ela é capaz de funcionar dessa maneira se sois muçulmano, budista, hinduísta, e estais condicionado por esse fundo? Não é, evidentemente. Por conseguinte, se perceberdes esse fato, deixareis de ser muçulmano, cristão, e vos tornareis outra coisa bem diferente —  não algum dia, no futuro, mas agora, neste mesmo momento. De outro modo, jamais vereis a verdade. Sobre ela podereis falar interminavelmente, ler todos os livros do mundo, mas jamais alcançareis sua beleza e vitalidade. Assim, a mente que investiga, que faz perguntas fundamentais, indaga também se a sociedade pode ser transformada radicalmente, fundamentalmente — não sua estrutura econômica, mas sim, a estrutura psicológica. Porque, se a psique não for transformada, continuareis a fazer, exteriormente, as mesmas coisas — modificadas, talvez, mas sempre segundo o velho padrão.

Cabe-vos, pois, fazer esta pergunta fundamental; a ela ninguém pode responder senão vós mesmo. Não há confiar em ninguém. Deveis, portanto, observar e, observando, aprender. Assim, pode a mente manter-se completamente desperta, observando, a fim de ver a verdade relativa a qualquer coisa e, vendo-a, atuar — assim como atuais em presença de um perigo? Ao verdes um perigo, atuais instantaneamente. Do mesmo modo, ao verdes, por inteiro, a  verdade relativa a qualquer coisa, há ação imediata. 

Krishnamurti — Nova Deli, 13 de dezembro de 1970
Extraído do livro: O Novo Ente Humano – Ed. ICK

(*) A mente está vazia e em silêncio, conforme Krishnamurti explica mais adiante (Nota do tradutor)

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