Aviso aos navegantes

Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

1 de abril de 2012

Difícil de entender


            Tenho dificuldade em compreender certas situações e sua permanência.
            Em Pinheirinho foi documentada a expulsão de mais de mil e seiscentas famílias, cerca de nove mil pessoas, idosos, crianças, deficientes, mulheres e homens – e a destruição de suas casas, muitas com os poucos pertences dentro, lançando essa multidão ao desabrigo. Crianças confiscadas de seus pais pelo conselho tutelar da cidade, por estarem desabrigados, não terem aceitado passagens pra fora da cidade e ocupado os abrigos improvisados pela prefeitura – que sofreram e sofrem uma pressão estúpida, com bombas de gás lançadas dentro desses abrigos durante a noite, explosões de efeito moral e assédio ininterrupto, sem banheiros suficientes, sem higiene e com a alimentação precária. O proprietário do terreno desocupado pela polícia, um mega-especulador já denunciado há anos, responsável pela quebra na bolsa do Rio de Janeiro, nunca pagou impostos devidos ao município, a área estava abandonada e se tornou um bairro – não uma favela – com ruas, postes e saneamento, pelo esforço da própria comunidade, há oito anos. Na omissão do Estado, o povo deu seu jeito. O usucapião urbano é de dois anos, a comunidade, repito, tinha oito. Mas o Estado e seu aparato de segurança foram usados pra defender a propriedade do especulador milionário – denunciado até pela veja, a revista mais reaça do país, na época da quebra da bolsa –, atacando a população, massacrando, espancando, matando cachorros e pessoas, em cenas de barbárie explícita. Algo mais claro?
            Na Grécia, considerada o “berço da democracia”,  nos meios acadêmicos, apesar de ser um sistema escravagista e de o voto ser restrito aos poucos “cidadãos de bens”, os homens ricos, vimos no mês passado a polícia de choque circundar o parlamento para protegê-lo da fúria da população, enquanto seus “representantes” votavam mudanças na legislação impostas pelos bancos internacionais, suprimindo direitos, cortando salários e empregos, aposentadorias e pensões – covardia cada vez mais comum –, privatizando coisas públicas e destruindo a economia do país, enquanto na cidade inteira a polícia tentava controlar focos de levantes populares, sem conseguir. Foi o caos durante dias, controlado com muito sangue, pancadaria, quebra-quebras e prisões, numa guerra generalizada onde o Estado ataca, contém e controla a população roubada, que se debate em protesto. Inutilmente. Algo mais claro?
            No Rio, onde os empresários do ramo imobiliário estão esgotando as áreas da Barra e zona oeste litorânea e voltam os olhos para o centro da cidade. Abandonado há décadas e com milhares de prédios sem uso, deteriorando, o centro foi tendo vários desses prédios ocupados pela população desabrigada. Na ausência do Estado, que não cumpre sua “lei máxima”, a constituição, que garante moradia, alimentação, etc., o povo sem teto toma suas iniciativas e se apropria do que é seu direito, violado pela própria estrutura social. Com a cobiça dos grandes empresários, a prefeitura apareceu com um projeto de “revitalização”, denominação mentirosa que mal encobre o processo de expulsão dos mais pobres pra longe dali, de investimento de dinheiro público na reestruturação da infra-estrutura do centro, agora transformado em patrimônio histórico, preparando a área pra chegada dos empresários. É o que eles chamam, na encolha, de “limpeza”. Pra eles, os pobres são lixo e devem ser removidos. Comunidades inteiras têm sido removidas no interesse dos financiadores de campanhas de legisladores e governantes, tornando-os seus agentes, travestidos de representantes do povo. Algo mais claro?
            Em São Paulo, favelas em locais valorizados são assediadas de todas as formas, legais e ilegais, físicas e psicológicas. Os incêndios nessas comunidades se tornaram comuns, a ponto de surgirem métodos de combate ao fogo pelos próprios moradores. Eles perceberam não poder contar com o poder público. Apesar dos chamados insistentes aos bombeiros, quando começa um desses incêndios, quem chega primeiro é a polícia, cercando a comunidade, enquanto empresários e seus políticos esfregam as mãos, repetindo o jargão dos fanáticos religiosos diante do que acreditam ser o demônio – “queeiima!” Num desses, que por acaso contou com a presença de algumas equipes de imprensa, foi mandado um caminhão dos bombeiros, pra não ficar tão mal na foto. A polícia teve que abrir passagem pra entrada do veículo. Era um caminhão velho, estava com meia carga de água e a mangueira tinha tantos furos que os moradores amarravam plásticos e camisas pra conter os vazamentos, sem sucesso. A água não chegava com a pressão necessária. A cena da mangueira jorrando água pra todos os lados, menos no fogo, era de revirar os intestinos. Algo mais claro?
              O Estado está seqüestrado pelos poderes econômicos e em preparação constante para a guerra e o massacre contra suas próprias populações. Exemplos temos de sobra, falta assumir a realidade. A coisa pública está imersa na privada.
            E nós, boiada conduzida, vemos o mundo restrito a dois “mercados” básicos, o de trabalho e o de consumo; vemos a vida como uma competição permanente e cada irmão como um adversário; sonhamos com consumos impossíveis para todos e aceitamos trabalhos que odiamos, transformando o prazer de trabalhar em sacrifício insuportável; assistimos os jornais da mídia privada mesmo depois de provas à exaustão da desonestidade dessa mídia, das distorções da realidade e da defesa histérica e irrestrita dos interesses empresariais, em prejuízo da maioria. Não nos revolucionamos por dentro, mas pretendemos revolucionar a sociedade, numa ingenuidade desanimadora. Os protestos e mobilizações são cada vez mais inúteis e ignorados pelas autoridades – ou atacados pelas forças de segurança, pondo em risco a integridade física e mesmo a vida dos que se manifestam. Em vez de conscientizar a população, a proposta é conduzir as massas, liderar, numa arrogância planejada e produzida nos laboratórios transnacionais de psicologia do inconsciente – na criação de valores falsos, desejos superficiais e comportamentos condicionados – e imposta pela mídia. As contestações não escapam ao condicionamento, por isso são inócuas, inofensivas ao sistema empresarista estabelecido sobre os poderes públicos. Se mudanças acontecem, no mais das vezes são mudanças cosméticas, na aparência, superficiais demais pra provocar mudanças profundas e reais na estrutura social.
            Começo a achar que o movimento hippie era muito mais revolucionário que esses europeístas cheios de arrogância, condicionados de todas as formas, subalternos ideológicos ao pensamento europeu, incapazes de criar e de revolucionar o próprio comportamento, incapazes de olhar dentro de si mesmos e encontrar aí o trabalho a ser feito, em primeiro lugar. Os hippies começavam mudando seu comportamento, seus valores, sua vida. Por isso contaminavam daquela maneira avassaladora, conquistando a juventude em massa e obrigando o sistema ao trabalho intensivo de criminalização daquela onda, de perseguição implacável, de dispersão e extermínio que eu vi, ninguém me contou. Eles pregavam a vida com o mínimo necessário de material, a abolição da alimentação industrial, o uso da medicina não comercial, natural, na maior parte dos casos, o desenvolvimento das artes e das relações fraternas, o igualitarismo, a generosidade, a solidariedade irrestrita, o pacifismo e a resistência às imposições de valores e comportamentos. Mais que isso, eles praticavam e viviam essas coisas. Sua revolução partia da alma, de dentro, era preciso vivenciar os novos valores.
            Não estou dizendo que eles revolucionariam a sociedade, que por ali seria possível. Apenas que era um movimento muito mais inteiro, muito mais contagiante, por ser impossível apregoar sem vivenciar no dia a dia, sem assumir o que se propõe e viver de acordo, independente se a sociedade é assim ou não, não importam as conseqüências. Um revolucionário sem amor, arrogante e cheio de verdades não é um revolucionário. Ao contrário, esse tipo de postura desmoraliza a palavra revolução. São os revolucionários dos rebanhos, esporrentos, raivosos e inofensivos ao sistema, recusados pela população, ridicularizados pela mídia e cansativamente repetitivos, incapazes que são de mudanças reais. Dizem querer mudanças, mas não conseguem ser essas mudanças – esta é sua limitação, sua contradição, sua precariedade.
            Não há meio termo, não há como negar. A sociedade está sob controle dos poderes econômicos, dos bancos, das grandes empresas, e o povo é traído permanentemente, sabotado, enganado, explorado e excluído dos benefícios do desenvolvimento. Difícil entender como pessoas informadas, instruídas e desejosas de mudanças não enxergam essa realidade e ainda falam em democracia, na pseudo “democratização pós-ditadura”, numa ditadura que mudou de cara, mas não de essência. Estamos envolvidos por mentiras descaradas que não resistem a uma análise simples. O problema é que não analisamos sem partir de premissas falsas. Na sociedade atual, o patrimônio vale mais do que a vida, o privilégio vale mais que o direito, o rico vale muito, o pobre não vale nada. O Estado, amarrado, seqüestrado, dominado, toma dos pobres pra dar aos ricos e está cercado por vampiros, morcegos, sanguessugas, carrapatos, pulgas, piolhos, bactérias, que o enfraquecem. O remédio contra essa anemia está na instrução, na informação, na conscientização – por isso se sabota o ensino, se controla tão ferrenhamente as comunicações e se ataca todo movimento popular que defenda os direitos da maioria, reivindique, denuncie ou conscientize. É a estratégia dos zero vírgula alguma coisa por cento da população pra impedir mudanças reais e garantir seu vampirismo sobre o poder público e as riquezas do país.

Eduardo Marinho
segunda-feira, 26 de março de 2012
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