Vivendo, eu nunca havia pensado na forma do meu nariz; no tamanho, se grande ou pequeno; ou na cor dos meus olhos; na largura ou estreiteza da minha testa, e assim por diante. Aquele era o meu nariz, aqueles, os meus olhos, aquela, minha testa: coisas inseparáveis de mim, nas quais, entregue a meus afazeres, absorvido por meus pensamentos, abandonado a meus sentimentos, eu não podia pensar.
Mas agora pensava:
“E os outros? Os outros não estão dentro de mim. Para os outros que me vêem de fora, as minhas idéias e os meus sentimentos têm um nariz. O meu nariz. E têm um par de olhos, os meus olhos, que eu não vejo e que eles vêem. Que relação há entre as minhas idéias e o meu nariz? Para mim, nenhuma. Eu não penso com o nariz – nem me importo com ele, ao pensar. Mas... e os outros? Os outros que não podem ver dentro de mim as minhas idéias e que vêem de fora o meu nariz? Para os outros, as minhas idéias e o meu nariz têm tanta relação que, suponhamos, se elas fossem muito sérias e ele, por sua forma, muito cômico, todos começariam a rir.”
Prosseguindo nessa linha, mergulhei neste outro problema: que eu não podia, vivendo, representar a mim mesmo nos atos da minha vida, ver-me como os outros me viam, colocar-me diante de meu corpo e vê-lo viver como se fosse o de um outro. Quando me punha diante de um espelho, acontecia uma espécie de seqüestro em mim, toda espontaneidade acabava, cada gesto meu me parecia fictício ou postiço.
Eu não podia me ver vivendo.
Pude ter a prova disso poucos dias depois, quando, caminhando e falando com o amigo Firbo, fui, como se diz, assaltado por uma impressão ao surpreender-me de repente num espelho que dava para a rua, o qual não havia percebido antes. Aquela impressão não durou mais que um instante, sendo logo seguida por aquele seqüestro com o fim da espontaneidade e o início do estudo. Primeiramente não reconheci a mim mesmo. Tive a impressão de um estranho que passasse pela rua, conversando. Parei. Devia estar muito pálido. Firbo perguntou:
- O que você tem?
- Nada – eu disse. E, invadido por um estranho assombro misturado com asco, pensei comigo mesmo:
“Aquela imagem entrevista de relance era mesmo a minha? Eu sou mesmo assim, de fora, quando – vivendo - não me penso? Então para os outros eu sou aquele estranho surpreendido no espelho; aquele, e não mais eu tal como me conheço: aquele ali, que eu, de primeira, ao notá-lo, não reconheci. Eu sou aquele estranho que não posso ver vivendo nem conhecer senão assim, num momento de distração. Um estranho que só os outros podem ver e conhecer, não eu.”
E desde então me fixei neste propósito desesperado: de perseguir aquele estranho que estava em mim e que me escapava, que eu não podia fixar diante de um espelho porque logo se transformava em mim tal como eu me conhecia – aquele um que vivia pelos outros e que eu não podia conhecer, que os outros viam vivendo, e eu não. Também eu queria vê-lo e conhecê-lo tal como os outros o viam e conheciam.
Repito: ainda acreditava que esse estranho fosse um só, um só para todos, assim como eu pensava ser um só para mim. Mas logo esse meu drama atroz se complicou com a descoberta dos cem mil Moscardas que eu era não só para os outros, mas também para mim, todos com este mesmo nome de Moscarda, tão feio que chega a doer, e todos dentro deste meu pobre corpo que era também um só, um e nenhum, ai de mim, que eu punha diante do espelho e mirava fixo e imóvel nos olhos, abolindo nele todo sentimento e toda vontade.
(LUIGI PIRANDELLO. UM, NENHUM E CEM MIL. LIVRO I)