Chamava-se Johann Caspar Schmidt, e não Max Stirner, nome pelo qual é pouco lembrado na história da filosofia, e saudado entre os que aderiram às ideias anarquistas. Sem dúvida, Stirner foi o mais curioso de todos os teóricos associados às ideias libertárias; ideias que não devem ser reduzidas a personalidades extravagantes ou ruidosas. Toda a sua vida resume-se em desordem, inconstância e má sorte, condensada no título de seu solitário livro O Único e sua Propriedade. Esta obra, que gozou um momento de brilho fugaz, em 1844, teria permanecido no sombrio adormecimento das bibliotecas públicas não fosse John Henry Mackay, um poeta individualista, que a trouxe novamente à luz, meio século depois de ser publicada, e recopilou alguns fragmentos da biografia do autor.
Max Stirner nasceu em 1806, e foi sucessivamente órfão de pai, desapercebido estudante de filosofia, cultor de uma moderada existência boêmia salpicada de bravatas extremistas, protetor de uma mãe assolada pela loucura, professor de uma escola de moças, autor de um único livro, micro-empresário fracassado, e por fim, um sobrevivente que obtinha um escasso sustento da gestão de negócios por conta de terceiros, depois de ser encarcerado, por pouco tempo, em decorrência de dívidas acumuladas, acabando, obscuramente, sem chegar à velhice, tuberculoso e na miséria, em 1856. São os dados de uma vida triste e patética. A única claridade nesta penumbra foi a publicação de seu extenso livro de quatrocentas páginas, que burlou, com certas dificuldades, a censura, mas que também lhe subtraiu o sustento, pois o expulsaram da escola onde lecionava. Logo veio o esquecimento.
O período em que Stirner redigiu seu livro — definitivamente, o curto tempo em que escreveu e pensou — transcorreu numa taberna, que era propriedade do senhor Hippel e cujo nome ficaria na história associado aos seus clientes assíduos, um grupo de jovens filósofos exaltados que se autodenominavam "Os Livres", e que gostavam de polemizar continuamente em intermináveis debates. Seus nomes: Bauer, Ruge, Marx, Engels e o próprio Stirner. Supõe-se que Friedrich Engels tenha sido o responsável pelo apelido Stirner ("frontudo", homem com fronte proeminente). Entre eles havia uma mulher (naquela época chamada "emancipada") que seria momentaneamente esposa de Stirner. Eram boêmios, dispunham de tempo, alardeavam seu extremismo verbal, e estavam fartos da influência que o fantasma de Hegel exercia sobre seus pares filósofos e sobre eles mesmos. Mais do que os outros, seria Stirner quem romperia de modo radical com o espectro hegeliano. Pouco tempo depois, o grupo se dispersaria, em grande parte devido ao agravamento das condições políticas da Alemanha. Todo esse tempo de criatividade do hegelianismo de esquerda não durou mais que um fósforo aceso.
A filosofia de Stirner, desenvolvida ardorosa e amplamente em O Único e sua Propriedade, consiste numa defesa cerrada da personalidade humana confrontada à sociedade e ao Estado. A máxima de Stirner resume-se à ideia de que a missão de uma pessoa consiste em chegar a ser ela mesma, reconhecer o que lhe é próprio, assumir que nada existe acima dessa "propriedade", e que, o que não constitui "o próprí de si mesmo deve ser posto em condição de tensão para tornar evidente o que está em afinidade com a autonomia pessoal e o que lhe é prejudicial e perigoso. A única propriedade verdadeira de uma pessoa é, então, ela mesma, todavia, paradoxalmente, para sê-lo de maneira autentica, é preciso tomar posse de si mesmo. Só a partir deste centro de gravidade é possível vincular-se livremente com a "sociedade". Stirner conclui que o Estado é necessariamente rival do indivíduo, que a instituição hierárquica, por sua própria essência, é anti-individualista. contrária à vontade pessoal. A pedra de toque da autonomia reside na personalidade, no caráter, essa substância que podemos moldar e construir como um projeto, do modo como uma pessoa procede à educação de si mesma. E com essa auto-educação o "Único" descobre o enorme poder que se encontra em germe em cada pessoa singular. Este é o princípio irrevogável sobre o qual constitui sua fortaleza argumentativa. O livro não é outra coisa senão um "canto" à liberdade individual, escrito sob a forma de tratado de filosofia, cuja radicalidade é inédita, mas cujo campo de tensões ideológicas é característico daquela época. O imperativo categórico individualista estava no "ar", e Stirner captou-o intuitivamente muito antes dos demais. Suas ideias podem ser entendidas, além do mais, como antecessoras e habitualmente não reconhecidas às de Friedrich Nietzsche e do existencialismo posterior. Em suma, Stirner foi o metafísico do anarquismo, quem descobriu algo evidente, todavia, muito difícil de assumir sem tirar as conclusões ontológicas e políticas que isso supõe: que toda pessoa em última instância, é única.
O restante da obra de Stirner são fragmentos. Não escreveu quase mais nada, exceto um livro eventual destinado a ganhar algum dinheiro e uns poucos ensaios. Um destes é O Falso Princípio da nossa Educação, escrito a pedido de Marx e publicado na Rheinische Zeitung, quase na metade do século XIX. A especificação da data não é extravagância, pois aquela época foi marcada pelo início da escolarização maciça, uma das afirmações fundamentais do projeto iluminista. A saga da escola pública foi promovida como o combate mortal contra o "flagelo do analfabetismo". Todavia, Stirner não acreditava que a alfabetização equivaleria à educação de homens livres. Até então, a educação consistira na formação estamental do "gosto" e das maneiras cortesãs, ou então, na especialização de uns poucos em ofícios específicos. Ou ainda, modos de adquirir habilidades intelectuais aptas para gerir as relações entre grandes senhores ou adquirir maestria numa arte a partir do saber de um homem já experimentado na matéria. O iluminismo, ao contrário, pensou a educação como meio para formar cidadãos livres, emancipados da tutela religiosa e das pressões autocráticas. No entanto, a igualdade entre seres emancipados do Antigo Regime não era o projeto de Stirner. Era a "igualdade, não com os demais, mas consigo mesmo" o que o concernia como filósofo, e isso estava fora de questão entre os pedagogos do século XIX, pois a ideia de unicidade sequer era pressentida. 'As liberdades do querer", via régia da modelação de si mesmo, transcendiam as filosofias da consciência. Para as duas escolas pedagógicas que Stirner critica, a humanista e a realista, uma preocupada com a formação clássica, a outra, em dotar os cidadãos de saberes cívicos e saberes aptos a "ganhar a vida", a educação não era outra coisa senão a acumulação de conhecimentos, e, na verdade, conquanto aparentem posições contrárias, não deixam de ser equivalentes. Em contrapartida, Stirner entende a educação como nutrição do espírito, como um modo de personalização do saber, como meio para a formação do caráter. Quando o saber é pensado como matéria prima a ser transmutada em vontade, entendemos que a essência do conhecimento consiste em favorecer as metamorfoses do Ser. Para Stirner, o ser humano é uma crisálida perpétua.
Hoje sabemos que o projeto do humanismo está em ruínas, e que sua grandeza, bem como sua debilidade, consistiu num imenso esforço para transformar a parte "animal" dos seres humanos num apêndice da razão.
Numa época passada, as práticas ascéticas cristãs tentavam, com outros instrumentos pedagógicos e um centro de gravidade distinto, alcançar o mesmo resultado. De agora em diante, a pedagogia deve pensar-se a partir de seu fracasso anterior. Stirner foi um_dos primeiros a assumir que a substância a ser objeto de um pensamento pedagógico era a própria existência, a vida, e que, para isso, não necessita apenas de liberdade de pensamento, mas também de liberdade de personalidade. Encontramo-nos agora com a mesma disjuntiva que Max Stirner enfrentou: criação ou domesticação. Caso se escolha a primeira opção, o conhecimento é somente — e tão-somente — um instrumento para abrir caminho rumo ao mistério de si mesmo.
Christian Ferrer
O Falso Princípio de nossa Educação
O Falso Princípio de nossa Educação