Creme Photoshop, por NJRO
Há mais chances em ser verdadeiro quando se é feio. O feio não precisa se preocupar com o disfarce de uma espinha no rosto porque, em verdade, não é uma espinha que o tornará mais feio. Nem, tampouco, em ocultar seus sentimentos mais vis, como ocorre na maioria dos belos, a quem não é permitida a menor lasca de vileza, porque traços vis são sinônimos de feiúra.
Ao belo, tudo que se refere à beleza. E ao feio, somente o que é feio.
Porém, a alma humana é constituída – em sua totalidade - de coisas belas e feias. E, infelizmente para a pessoa bela, ela ainda é o recipiente de uma alma humana. Por isso, ao feio, a quem é permitido ter as coisas feias da alma – já que a própria natureza o fez feio – torna-se mais fácil enxergar em profundidade, contrastando a invalidez de todo olhar raso e supérfluo.
A vida e as pessoas se mostram, então, desprovidas de seus encantos... de seus encantos fabricados e não espontâneos. Entretanto, a maior parte das pessoas se refugia naquilo que interpretam como encantador.
Por que a necessidade de encanto se faz tão importante?
Porque o viver exige um pouco, pelo menos, de descontração e alegria, de um fluir leve e espontâneo, isento de qualquer culpa, ou indulgência, ou condicionamento inculcados por familiares, educadores, colegas, ou quem quer que seja. A isso chamamos ‘encanto’.
Este estado de isenção vem... vem conforme a pessoa ganha confiança em si mesma, na sua maneira própria de perceber o modo menos lesivo de interagir com o alheio. Até ficar, absolutamente, impermeável a toda forma de perturbação e hostilidade, exterior ou interior.
Nada há de indiferença nisso... daquela indiferença que nega envolvimento.
Quando estamos permeados por uma espécie de redoma diáfana que concede firme sustentáculo à existência do nosso Ser, ficamos imunes e impermeáveis a outras influências que tentam nos chacoalhar ou achincalhar. É como se adentrássemos ao recinto de onde emana a Energia Primordial que, em cada um, encontra sua manifestação mais particularizada.
Pois bem.
São estas partículas da Energia Primordial, presentes na constituição de tudo (na rocha, na planta e nos animais), as portadoras da sensação simultânea de unidade e exclusividade; ou seja, ao mesmo tempo em que ocorre o estado de unidade com os seres viventes, continuamos existindo enquanto seres distintos. E a dinamização destas partículas é ativada pela confiança, pela confiança em si mesmo, pela confiança em continuar existindo dignamente apesar de revelar nossa intimidade, a intimidade de nossos pensamentos e sentimentos, ainda que seja em um turbilhão regurgitante. A iniciativa em revelá-los já traz, em si mesma, reconforto.
Trará, também, um ouvinte silencioso e sábio.
Já é o começo do alívio e, paulatinamente, vai nos tornando dóceis para o poderio da mansuetude. É na mansidão que fazemos contato com a imensidão. E na imensidão cabe tudo: cabem os erros e os desacertos, os fracassos e os sucessos, os amores e desafetos, o feio e o bonito, o rir e o chorar, o rancor e o perdão.
E contra a imensidão não há quem possa. Portanto, tornamo-nos destemidos. Sem temor em dar vazão ao nosso amor. Ao afeto. À ternura. À lisura em nossas palavras, mesmo ao manifestar teor aguilhoante.
Esse relato é uma tentativa de me fazer compreender por aqueles que me têm apreço. Ainda que eu não tenha sido agraciado com a feiúra completa - que me premiaria com a verdade completa - guardo traços dela. Reconheço que posso não ser o representante maior da formosura e da beleza, mas feio – feio de todo - eu não sou também. Ninguém o é.
Ainda jovem assisti ao filme ‘O Homem Elefante’ que, anos depois, voltei a assistir. Na segunda vez em que eu o assisti, chorei copiosamente. Chorei de não conseguir controlar, aos soluços. Para quem não conhece, este filme narra a estória de um feio. De um feio e deformado. Digno de atração de circo. Que não conseguia dormir deitado (o maior de seus sonhos) por causa de sua deformação. Que ao lhe ser dispensado um tratamento humano, revela toda sua docilidade, nobreza e talento únicos.
Este filme é o retrato fiel de como os que se nomeiam manipuladores da sociedade atual tratam os que fogem dos padrões de beleza e de conduta mais apropriados ao proveito exclusivo deles.
Nem por isso, o ‘homem-elefante’ deixou de possuir dons únicos que, oportunamente, encontraram seus próprios canais de exteriorização. E toda sua beleza foi apreciada por quem soube conservar intangível sua porção do Ser.
Liban Raach