"Libertas Quæ Sera Tamen" (Liberdade ainda que tardia)
Reconheço: sou fruto de um sistema educacional aplicado desde a minha mais tenra idade (jardim da infância, primário, ginásio, colegial, bacharelado, etc..); de uma formação pedagógica incentivadora da erudição e da cultura, da ciência e da conquista de status pela excelência das notas (como único critério de inteligência), onde a mais vaga noção de individualidade é peremptoriamente sufocada no ventre nascituro. Propagam ser este o sistema de formação de uma sociedade mais civilizada.
Pergunto:
Como pode haver a construção da civilidade em indivíduos submetidos desde criança a uma variedade de agressões sub-reptícias e tácitas, legitimadas por uma rede de instituições jurídicas, legislativas, governamentais e corporativas privadas? E toda esta rede viciada invade o ambiente doméstico onde estas mesmas crianças deveriam ter sua primeira experiência de segurança e aconchego, de amor incondicional. Como é possível apregoar que o amor dispensado no lar seja incondicional se aos pais são impostas inúmeras condições para prover uma sobrevivência menos indigna, condições estas que destroçam qualquer manifestação genuína e autêntica da individualidade amorosa e generosa dos pais, subordinando-os, na maioria dos casos, a uma chefia incompetente e corrupta engajada fria e ferozmente num mercado competitivo também frio, feroz e, acima de tudo e de todos, desumano?
E temos a presunção, a arrogância mal disfarçada, a prepotência, a hipocrisia de nos espantarmos com as crueldades praticadas por crianças ou contra crianças. As penalidades devem ser aplicadas, claro.
Entretanto, a solução definitiva exige mudanças estruturais. Do contrário, estamos todos condenados a continuar convivendo com as crueldades próprias da negação de si mesmo numa escalada cada vez mais vertiginosa!
Toda violência - sofrida ou praticada - encontra razão de se concretizar, de se efetivar em ação, movido pela sensação opressora no indivíduo. Esta sensação reside dentro de cada indivíduo. A opressão é sucedida pela depressão, e por toda gama de transtornos psíquicos e psico-fisiológicos, e pela variação de vícios e compulsões, e – finalmente – pelo assassinato ou pelo suicídio. E em alguma hora, em alguma ocasião, infalivelmente externar-se-á.
Está livre da violência quem é livre de tudo que lhe oprime. E só quem é desprendido tem a propriedade deste estado de libertação. Esta é a única propriedade verdadeiramente pessoal e intransferível, a despeito das instituições bancárias cujo acesso à conta é feito por meio de uma senha com semelhante designação (pessoal e intransferível). Posso facilmente dizer a minha senha do banco para qualquer pessoa que eu desejar. E ela terá acesso a toda minha riqueza (meus parcos dotes financeiros e minhas dívidas - no meu caso específico).
Mas qual a senha para transferir o bem-estar e a paz interior? Como contribuir para favorecer o acesso à riqueza de um estado de libertação plena?
Nenhuma força tarefa tem a capacidade de instaurar a paz nos corações dos Homens, ainda que seja uma importante contribuição para as circunstâncias favoráveis a tal ocorrência. Esta tarefa cabe a cada um fazê-la silenciosamente. Sem discutir. Sem argumentar. Sem querer impor sua opinião sobre como fazê-la. E exige força. Força para desbravar uma maneira particularmente sua, e somente sua, de acessar a sua riqueza única e de mais ninguém.
Liban Raach