Estou aprendendo a observar a qualidade dos sentimentos. Percebo cada vez mais a importância deles em nosso pensamento, na qualidade geral da vida e na maneira de sermos e de nos relacionarmos.
Existem todos os sentimentos, mesmo os mais bárbaros, na maioria dos seres humanos, ainda que na forma de semente. Consigo imaginar situações em que me tornaria – eu, que sou tranqüilo – um monstro sanguinário, em circunstâncias específicas que prefiro não relatar, por hediondas que são. Sinto a necessidade de trabalho neste sentido, de observar, aprender, questionar e influenciar os sentimentos tanto em mim mesmo quanto os que produzo na coletividade, nos outros, dentro das minhas possibilidades, claro. Venho me empenhando neste aprendizado.
Neste caminho há uma clareza crescente de percepções novas, o desenvolvimento da capacidade de sentir, de perceber os sentimentos que se produzem, antes que se manifestem, e interferir neles quando é possível. Um trabalho muito ligado à área da intuição. O saber acadêmico, racionalista, muitas vezes nega ou despreza essa área, empobrecendo em muito os potenciais da razão e do desenvolvimento realmente humano – o desenvolvimento que vejo, a mim parece mais desumano, mais egoísta, exclusivista, excluidor e explorador da maioria. A tendência racionalista das academias cria um sentimento de superioridade que as afasta das maiorias, consideradas inferiores a partir do inconsciente, gerando de desprezo e agressividade a benevolência e compaixão, de acordo com o caráter, da índole pessoal. Confundem falta de conhecimentos com falta de personalidade, falta de estudos com falta de sabedoria.
Essa tendência alimenta sentimentos desequilibrados de arrogância e vaidade, de superioridade em lugar de responsabilidade, de direito a privilégios em vez de obrigações morais, que por sua vez alimentam a tendência racionalista do pensar acadêmico, em justificativa da própria existência como elite intelectual. Mas a forma como a academia é utilizada (sempre em benefícios das empresas, das elites e das suas minorias de sustentação, as classes médias altas) me dá a sensação de planejamento, de estratégia intencional.
Bom, voltando ao assunto, observando a influência dos sentimentos no comportamento, nas ações e reações e nos pensamentos, tenho encontrado maneiras de, por exemplo, desarmar pessoas que se colocam em rota de colisão, partindo do momento em que se manifesta o sentimento que tende ao conflito – na fisionomia, na postura corporal, no tom de voz – e antes que ele se manifeste em atitudes, em palavras ou atos. Na maioria das vezes, bastam palavras de respeito às diferenças de opiniões e visões de mundo. Idéias pacificadoras simples e agradáveis à maioria. Diante de um eventual insulto, já não existe sentimento de ofensa - que é justamente o objetivo do insulto, no caminho do conflito primário. É fácil não se deixar levar, quando se consegue observar, com alguma isenção, os sentimentos envolvidos. O insulto tende a morrer na boca do agressor, se não encontra o retorno esperado. O aprendizado é proporcional à tolerância, ao interesse e ao respeito pelo outro – mesmo que o outro não saiba respeitar –, que criam a capacidade de absorver as lições que sempre se apresentam.
Se no âmbito pessoal podemos perceber a total influência dos sentimentos na qualidade de vida e nas relações com pessoas, situações, acontecimentos e contrariedades, estendendo os olhos sobre a coletividade, vemos quanto desequilíbrio é produzido pela falta de atenção, de estudo e trabalho nesta área. Ao contrário, são estimulados os piores sentimentos, como egoísmo, vaidade, preconceitos, discriminações, por uma publicidade irresponsável cujo único objetivo é induzir ao consumo compulsivo, obrigatório para alcançar algum valor social. No interesse das empresas. O ensino público foi destruído e o privado foi direcionado aos interesses empresariais. Os bancos e as empresas viraram o centro do mundo, da vida, do universo. O mundo é apresentado como um imenso mercado invisível abrangendo todas as áreas das sociedades, a partir de dois troncos principais, o mercado de trabalho e o mercado de consumo, que devem ser disputados em competição permanente e sem tréguas por todos, em benefício de minorias numericamente insignificantes, mas que concentraram, ao longo dos séculos e por dinastias, os poderes que se impõem sobre os Estados, suas instituições e seus povos. Por isso os serviços públicos são tão precários e áreas estratégicas, como saúde, educação e segurança se encontram em estado de barbárie. Não é por incompetência, é intencional, é competência com os objetivos da concentração, que passa pela desinstrução e pela desinformação da maioria, pelo extermínio dos “excessos” e pela contenção dos inconformados.
É preciso desenvolver a observação e a influência sobre os sentimentos, inclusive para perceber a quantidade de sentimentos induzidos pelas mídias, pelo ensino deturpado, pela publicidade massiva e pela propaganda ideológica alienante, que distorcem a realidade e escondem as causas de tanto sofrimento, tanta sabotagem, tanta covardia, tanto abandono. Fomos influenciados desde o inconsciente por técnicas de formação de opinião, de desejos, de valores, por manipulação midiática, por condicionamento cultural.
Quando encaramos o irmão que discorda ou que apenas caminha ao nosso lado como adversário, sustentamos o sistema; quando desejamos ser melhores que os outros, ao contrário de sermos apenas o nosso melhor possível, na disposição de aprender mais e sempre, sustentamos o sistema; quando usamos marcas “de qualidade”, ignorando o trabalho escravo e a exploração extrema, a destruição da natureza e de coletividades em áreas de interesse econômico, o desrespeito e as violações constantes que essas empresas impõem aos povos de todo o mundo, sustentamos o sistema; quando desejamos situações de riqueza, sem considerar que privilégios para poucos há muito tempo custam os direitos básicos das maiorias, sustentamos o sistema.
Somos levados a colaborar com esse sistema de exploração desmedida do trabalho, de concentração de riqueza e poder nas mãos de minorias cada vez menores que não se sustentariam, se não fôssemos levados a colaborar, a consentir e a manter, massa de manobra modelada pela interferência da ideologia empresarial no ensino e entorpecida por uma mídia privada dominante e essencialmente empresarial.
Adotamos valores planejados e implantados mesmo no inconsciente, com os conhecimentos da psicologia avançada dos estudos acadêmicos que são usados em publicidade, propaganda e marketing.
Somos convencidos de que a vida é uma competição e todos são adversários; que felicidade é consumir, desfrutar de excessos, patrimônios, facilidades, confortos e garantias; que o mundo é isso mesmo e não tem jeito, não se pode fazer nada a não ser entrar na corrente e disputar o seu espaço, lutar por si mesmo, nunca pela coletividade. Somos levados a não ver a miséria produzida por essa estrutura social desumana e concentradora, ou a vê-la como inevitável, certamente desagradável e injusta, mas inevitável realidade que não encontra explicação, a não ser atirando a responsabilidade sobre as próprias vítimas para justificar seu abandono à própria sorte – e não se pensa mais nisso.
Prestando atenção aos próprios sentimentos e aos que nos rodeiam, percebemos aos poucos suas origens, seu nascedouro, suas motivações externas e inconscientes tornadas, aos poucos, conscientes. Ganhamos poder de influência sobre nossos valores, desejos e objetivos de vida, gradualmente os limpando dos condicionamentos mediocrizantes a que ninguém escapa e que nos causam uma vida de angústias permanentes e frustrações constantes, nos círculos viciosos entre o consumo e o trabalho, incluindo no consumo desde o básico para a sobrevivência – como a água – até as necessidades do espírito humano – cultura, integração, afetos, sentimentos,... –, tudo reduzido à qualidade de mercadoria.
Quando desenvolvermos o sentimento de solidariedade irrestrita, quando desejarmos do mundo apenas o necessário para viver com dignidade e em harmonia com o coletivo, quando sentirmos todas as crianças como filhos comuns e os velhos como pais e avós de todos, quando a prioridade forem as situações de fragilidade, quando desenvolvermos os próprios valores, desejos e objetivos de vida relacionados com a harmonia social e a igualdade de oportunidades para todos, sem exceções, o sistema desmorona sem ruído, de inanição. Pois somos nós todos que o sustentamos, conduzidos como o burro puxa a carroça atrás das cenouras penduradas numa vara, sem alcançar.
Sensibilizar, esclarecer, conscientizar, são tarefas que ganham em força e alcance quando partem de um trabalho interno, profundo e sincero, disposto a reconhecer erros e corrigir rotas, a qualquer momento.