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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

5 de julho de 2011

O poder modelador dos primeiros cuidados

Uma das coisas mais importantes que aprendemos da moderna psicologia é que muitas das nossas atitudes e problemas da idade adulta têm suas raízes no passado remoto dos nossos anos de amamentação e de infância, aparentemente tranquilos. A vida da criança pode parecer plácida e sem incidentes, mas desde que nasce ouve o ressoar longínquo de milhares de ruídos, uns vindos de dentro de seu próprio espírito e outros do mundo exterior. No ventre materno não conhecia nem frio nem calor; agora recebe pela epiderme essas sensações. Quando protegida nas entranhas maternas, não tinha que respirar, comer ou excretar; agora, cabe-lhe fazer essas coisas por sua própria conta. Precisa de ajuda para fazê-las, precisa de proteção e, para essa proteção e ajuda, tem que fiar-se nesses enormes gigantes, pai e mãe. Ela é total e completamente dependente, incapaz de encontrar por si mesma respostas adequadas para as suas necessidades. Aí está ela, com seus meios de adaptação lamentavelmente limitados, com um mínimo de padrões de reação inatos. Calor, alimento e amor, coisas de que precisa para sustento da vida, vêm até ela quando faz o que é "correto" e o que é correto é o aprendido e o civilizado, não o instintivo e o primitivo. Os gigantes, seus pais, fazem-lhe exigências — começam a moldá-la de acordo com seus próprios hábitos e a criaturinha tem que se submeter a todas essas exigências externas, a fim de obter o que quer e de que precisa. Tem que obedecer a centenas de regras de educação vagas e incompreensíveis, para que lhe retribuam com a afeição e a proteção de que tanto depende. Tudo isso a transforma num ser mais ou menos conformista. É absorvida, por assim dizer, pela moralidade dos pais, que se torna uma força sempre presente no interior da criaturinha. Imprimem-lhe toda espécie de hábitos que servem para condicioná-la à forma de adaptação específica, que seus pais e a sociedade a que pertence acreditam ser boa para ela. As formas que tomará seu comportamento adulto são representadas pelas de comportamento de seus pais. A mãe paciente inculca paciência no filho, a mãe ansiosa, impulsiva, inculca-lhe tensão de espírito. 

A criança educada num ambiente carinhoso trará, no íntimo, imagens de amor e afeição e será capaz de aceitar todas as restrições impostas à sua liberdade pelos pais, todas as normas baixadas por estes. Aceitará horários, iniciação nas regras de higiene, irritações dos pais, sem excessivos protestos íntimos, mesmo quando suas necessidades estejam em oposição a essas exigências sociais. Poderá querer que a alimentem, quando, de acordo com o horário que lhe marcaram, não deve ter fome. Poderá querer dormir, quando os pais acham que deva estar acordada. A sociedade exige que aprenda a protelar a satisfação de suas necessidades e ela reagirá a essas exigências, de acordo com o senso de segurança que tem da afeição de seus pais. Tem que aguardar a hora de alimentar-se, não lhe é permitido  mamar mais, tem que controlar suas dejeções — tudo isso impõe à criança novas e difíceis adaptações. O impulso de satisfação imediata e incondicional de suas necessidades tem que ser transformado em algo muito mais complicado — um padrão integrado de respostas aprendidas. 

Não tem importância, nesta oportunidade, a descrição dos diferentes modos pelos quais a criança enfrenta essas primeiras obrigações impostas pela cultura. Mas é importante compreender que o berço e os primeiros cuidados  mudam e recondicionam as respostas naturais inatas da criança insocial e primitiva, para moldar nela um adulto, que poderá ter recebido na infância um legado de frustrações produzidas pelo processo de moldagem. os problemas individuais têm como causa os padrões individuais de educação infantil; esses padrões são, até certo ponto, o produto das tradições culturais em que se acham enraizados e dos moldes da comunidade em que a criança nasceu. Na medida em que a nossa sociedade impõe às crianças frustrações e restrições, para as quais elas não estão preparadas, nem biológica nem emotivamente, nessa medida a nossa cultura prepara o caminho para os problemas de comportamento da idade adulta e para as atitudes neuróticas de submissão e agressão, as quais podem encontrar meios de expressão pela filiação a um grupo totalitário qualquer. 

O condicionamento da criança para a atitude servil e submissa, por exemplo, pode principiar quando os pais impõe rigidamente normas automáticas de conduta. Podem fazer dela um horário-maníaco ou um autômato da limpeza. \quando os pais compelem a criança a falar muito cedo ou a calar quando as palavras lhe fazem cócegas na garganta ou, ainda, a dormir quando têm o corpo palpitando de energias de vigília, então, imprimem no filho um permanente sentimento de culpa — sente-se ele perturbado e infeliz de cada vez que não atende às exigências paternas. E ao mesmo atempo forçam-no a amá-los, ainda mesmo quando lhe são desagradáveis. Compeliram a criança a desculpar-se por comportamento que ela acredita ser perfeitamente aceitável; exigirão dela que confesse crimes que, na idade que tem, não concebe como crimes. Algumas das técnicas de lavagem do cérebro podem ser observadas na educação do berço; os pais submeterão o filho a interrogatórios, trá-lo-ão preso a barra da saia ou, ainda, o manterão sob contínua vigilância. Cercando-o de solicita atenção, jamais o deixarão sozinho, para gozar da impressão de segurança de si mesmo. Nesse ambiente, a criança fraca torna-se efetivamente insegura; para retribuir a segurança que pede emprestada aos pais, torna-se mais cordata e submissa, embora esse seu conformismo recubra, no íntimo, forte protesto e tremenda hostilidade.

Quando os pais não permitem que a criança exprima aberta e diretamente suas necessidades instintivas, forçam-na a procurar outros modos de exprimi-las. Se, durante os primeiros ensinamentos — que podem principiar no dia do nascimento — a criança esbarra com restrições sem fim à direta expressão de suas necessidades, ela procura manifestar essas necessidades de modo indireto — através da irritação, agitação e choro. Em lugar de capacitar-se  para usar as vias naturais de manifestação de seus impulsos instintivos, é a criança condicionada de modo a só lhe ser permitido agir suprimindo e dominando o impulso. na luta que trava para dominar o impulso e, assim, agradar aos pais, os meios naturais de expressão da criança podem se inverter. Em lugar de exprimir, aprende a reprimir.  Aí estão as raízes de comportamentos adultos tais como a submissão abjecta e o impulso para a mentira e acomodação. O alicerce desse padrão masoquista de rendição é construído na infância. A submissão e a confissão são as únicas estratégias possíveis para a criança, num mundo poderoso  demais para que ela possa manobrá-lo. Rebeldia, hostilidade e ódio íntimos podem exprimir-se de modo paradoxal. O silêncio inflexível da criança é a prova de que ela quer chorar e berrar. Pode explorar e agredir o mundo hostil indiretamente, por meio de gesto mistificadores, comportamento rude ou mesmo ataques epiléticos. Obrigada a suprimir suas necessidades instintivas e seus meios de satisfazê-las, pode dissimular-lhes a existência, mesmo aos seus próprios olhos. O conformismo de superfície torna-se seu único meios de comunicação  e, nessas circunstâncias, as palavras e gestos servem para dissimular Nunca diz o que pretende e, aos poucos, acaba nem mesmo sabendo o que pretende. 

Os efeitos desse tipo de educação infantil sobre a vida adulta são evidentes. Adestrada no conformismo, a criança pode bem tornar-se um adulto que, com alívio, dá as boas vindas às exigências autoritárias de um chefe totalitário. E essas boas vindas são a reprodução de um velho padrão de comportamento, que pode repetir-se independente da aplicação de novas energias emotivas. 

Joost A.M. Merloo
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