O antropólogo Carlos Castañeda escreveu doze livros contando sua saga e seu aprendizado com o brujo Don Juan no México. O primeiro desses livros, conhecido no Brasil como “A Erva do Diabo”, é o mais conhecido. O título original da obra é ”The Teachings of Don Juan” em inglês e “Las Enseñanzas de Don Juan” em espanhol. Em português seria “Os Ensinamentos de Don Juan” se o título original fosse respeitado e não houvesse uma distorção para fins mercadológicos.
Nesse livro, que marca o início do aprendizado de Castañeda, Don Juan lhe diz que o homem possui quatro inimigos que deve saber enfrentar para tornar-se um guerreiro, um homem de conhecimento. Esses inimigos são: o medo, a clareza, o poder e a velhice. Nesse texto, tentarei apresentar uma interpretação própria desses ensinamentos. Ao mesmo tempo que busco coerência com a obra original, pretendo mostrar o que entendo sobre esses inimigos, tomando a liberdade de apresentar a apropriacão que fiz desses conceitos.
O primeiro dos inimigos é o medo. Toda vez que buscamos um novo caminho de crescimento, ele aparece para nos testar. Há medos de toda ordem e algumas vezes ele chega a se tornar um pavor, um desespero. Um formidável inimigo que pode tornar-se um grande aliado: se não temos medo, nos tornamos pessoas irresponsáveis; se ele paralisa a nossa busca, nos tornamos covardes. Entendo que o medo é constitutivo da vida humana e temos que caminhar, mesmo sentindo medo. Ele pode ser controlado e exige coragem, mas nos transforma em pessoas alertas: guerreiros sempre à espreita.
Muitas pessoas deixam de viver, de lutar pelo que acreditam, de crescer como indivíduos porque o medo as paralisa, não as deixa seguir em frente. Medo do que vai acontecer no futuro, medo de se machucar, medo de se arrepender, medo de sofrer, medo de experimentar, medo de buscar novos horizontes, medo do que os outros vão pensar: medo de viver! E o medo faz elas ficarem na inércia, na repetição, no caminho do comodismo, no conforto do que sempre foi. Mas isso não é crescimento, é estagnação. Para crescermos, temos que ter consciência do medo, saber que ele existe, que ele pode ser vencido, agir com coragem, seguir em frente diante da incerteza e torná-lo um excelente aliado!
Se conseguimos vencer nosso primeiro aliado, chega o segundo: a clareza. Aqueles que foram vitoriosos em sua luta contra o medo, acabam sentindo, vendo, percebendo, pensando e agindo com uma clareza muito maior. A maioria ficou no seu casulo paralisada pelo medo, aqueles que enfrentaram conseguem a clareza: o dom de ver aquilo que a maioria não ve, já que o medo as impediu de sair do lugar comum, do senso comum. Mas a clareza também tem seus perigos e muitos sucumbem.
Não é uma tarefa fácil lidar com a clareza em um mundo de cegos. Ver aquilo que outros não vêem é um desafio a ser enfrentado com serenidade e coragem. A sensação de isolamento é forte, um grande desafio a ser superado.
O que se pode ver com a clareza ninguém quer ver ou não consegue; o que outros vêem como verdade é apenas uma ilusão para quem tem a clareza. Muitos se assustam com o que vêem e outros começam a crer que são seres superiores por ter algo que a maioria não tem. Alguns se perdem em sua vaidade; outros não suportam o que vêem e perdem o equilíbrio mental; outros desistem de enxergar por sua visão parecer insuportável. Se há o dom para ver os Céus, com ele vem a visão das sombras. E muitos preferem não ver mais, são vencidos pela clareza ou pelo medo: os inimigos andam juntos.
Mas a clareza também pode ser utilizada como um poderoso aliado. Com firmeza, determinação e equilíbrio, podemos viver na loucura controlada. Saber que muito do que é considerado verdade é apenas uma loucura, uma construção histórica que em breve irá desabar também. E tentando ajudar nossos semelhantes a ter clareza também: para ter a visão que possibilite manter e ampliar o que é da Vida e lutar contra o que é da morte. Saber que quase tudo é uma loucura, mas manter a serenidade perante essa loucura.
Quando se vence o medo e a clareza, surge o terceiro inimigo: o poder. Com a capacidade de controlar o medo e com a poderosa visão que a clareza proporciona, naturalmente se adquire poder. A capacidade de influenciar outras pessoas, de transformar estruturas, de atingir objetivos com facilidade, de obter percepções extra-sensoriais, de mobilizar e canalizar intensas energias. E o poder é sedutor, um inimigo perigoso, tamanha sua força.
Depois de ter vencido o medo, conseguido a clareza e obtido poder, começam as tentações e testes. E muitos sucumbem. Ao invés do poder ser utilizado para abrir caminhos para a evolução humana e da sociedade, torna-se uma habilidade usada exclusivamente para proveito próprio, para satisfazer o ego. Surge a falsa necessidade de comandar, de ser um líder insubstituível, de ter a certeza sempre, de ter súditos e admiradores, de colocar as pessoas e processos sob controle pessoal. E esse processo nunca cessa: é preciso cada vez mais poder para se manter no poder.
E as pessoas se tornam escravos do poder, se perdem em seu ego e se tornam pessoas frágeis. Pessoas que externamente podem até ser vistas como poderosas, mas são crianças profissionais: brincam com a vida alheia sem responsabilidade, sem ter consciência de que os fantoches são eles. Na primeira decepção ou quando enfrentam um adversário de valor, colocam a culpa no mundo pela sua própria fraqueza: o poder sugou toda sua energia.
Esquecem que cada caminho é apenas um caminho e que cada um deve buscá-lo dentro de si, nos seus corações. Pode-se até auxiliar outras pessoas, mas ninguém tem autoridade para dizer para alguém qual é o melhor caminho a ser seguido. Isso cada um deve descobrir por si. O poder é realmente tentador e muitos sucumbem, talvez na classe política isso seja mais evidente, mas isso acontece em todas esferas da vida humana.
Só que o poder também pode ser utilizado como um aliado. Essa capacidade e esse brilho que o poder traz podem ser canalizados para o Espírito, pode-se agir de acordo com o Coração, pode-se colocar como um instrumento das Forças da Vida. Pode-se utilizar essa capacidade para construir um mundo melhor para todos, para transformar positivamente a vida dos que cruzam nosso caminho, ajudar as pessoas acender o próprio fogo interior, a transformar as estruturas da repetição, a criar a Diferença.
Enfim, pode-se usar o poder para quebrar os processos de reprodução desse descalabro social e ambiental: creio que é esse o desafio para quem adquiriu e está adquirindo poder. Um enorme desafio e que não se resolve de uma vez, é sempre um caminho, mas um caminho ao mesmo tempo individual e coletivo, um caminho com o coração, uma busca pela impecabilidade. É a ânsia pela perfeição, pela justiça, pela verdade. E isso se reflete em atos cotidianos, não apenas em grandes obras!
Por fim, há um inimigo que não pode ser vencido: a velhice. Todos, uma hora ou outra, sentirão suas marcas. Na verdade, podemos interpretar a vida como um processo de envelhecimento constante: de bebês à crianças, de crianças a adolescentes, de adolescentes a jovens adultos, de jovens adultos a jovens de meia-idade, da meia-idade à terceira idade. A velhice é o maior inimigo do homem, vai atingir os que sucumbiram ao medo, mas também aos que não sucumbiram; vai atingir os que se amedrontaram perante a clareza, mas também aos que conseguiram suportar a visão; vai atingir aos que adquiriram poder para o coletivo, mas também aos que se seduziram por suas falsas promessas.
Só que a velhice, que vai aos poucos limitando nosso corpo físico, traz a sabedoria caso seja enfrentada com dignidade. E isso dependerá de toda uma vida: que caminho escolhemos, quem escolhemos para caminhar ao lado, que decisões tomamos, de quem nos afastamos e de quem nos aproximamos, como cuidamos do nosso corpo, do nosso espírito e da nossa mente. É um novo desabrochar e não uma decadência. O que nao podemos é deixar nosso espírito envelhecer: ele é eterno!
Podemos envelhecer com dignidade e acho que o melhor modo de fazer isso é disseminar sementes: para que as futuras gerações e os mais novos possam ter modelos em que se apoiarem, com base em belas palavras e ações que só a experiência ensina. Enfim, construir uma trajetória nesse planeta que não seja apenas sobrevivência e voltada para o próprio umbigo, mas construir uma vida que seja uma verdadeira obra de arte: uma busca por uma conduta impecável, um foco claro em iluminar a escuridão! E para isso não há um caminho pronto nem fórmulas pré-estabelecidas, há tantos caminhos quanto existem corações, cada um deve achar o seu.
Fonte: http://diegocanhada.blog.br