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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

19 de maio de 2012

Pedantismo, doença infantil do estudante de filosofia

por Paulo Jonas de Lima Piva

 Há um comentário do filósofo romeno Emil Cioran bastante ilustrativo acerca dos malefícios que uma certa concepção de filosofia pode provocar. Algumas pessoas entendem a filosofia como algo semelhante à religião, ou seja, como uma fonte de verdades absolutas e de modelos corretos de pensar; como uma forma superior e privilegiada de reflexão acessível apenas a iniciados ou superdotados; ou ainda como uma via para visões de mundo redentoras. E tudo isso sempre em contraposição a um menosprezado e vago “senso comum”. Contra os efeitos nocivos desta concepção de filosofia, sobretudo para o próprio indivíduo que assim a concebe e a vive, Cioran dá o seguinte depoimento:

“A filosofia tem algo muito perigoso: ela te enche de orgulho, te torna megalomaníaco. Quando eu lia qualquer um dos grandes filósofos, tinha a impressão de ser um Deus”.

Esse lamentável fenômeno diagnosticado por Cioran, que poderíamos definir aqui como pedantismo, ocorre muito nas academias e em outros espaços dominados pela reflexão, pelas artes e pela crítica, de escritores a atores, de professores, músicos a jornalistas, passando evidentemente pelos filósofos. E, por falarmos em filósofos, o pedantismo, infelizmente, também é verificado de modo precoce entre muitos alunos de graduação dos nossos cursos de filosofia. Quem é do ramo há algum tempo sabe muito bem o quanto as ciências humanas, em especial a filosofia, atraem para o seu seio pessoas, digamos, estranhas e problemáticas, dentre elas os pedantes.

E quais seriam as causas geradoras do aluno pedante, isto é, de jovens estudantes arrogantes, pernósticos, que ostentam conhecimentos que não possuem, às vezes até de forma agressiva, intolerante e desrespeitosa?

Certamente as causas são muitas e complexas. Entretanto, uma delas talvez seja a faixa etária dos alunos que ingressam no curso, a maioria adolescente. Estereótipos à parte, quem já passou pela adolescência não se esquece que esta é uma fase conturbada para muitos em virtude de suas peculiaridades como inseguranças, questionamentos existenciais, incertezas, necessidade de auto-afirmação e, sobretudo, imaturidade para o tipo bastante específico de trabalho intelectual exigido pela filosofia. É preciso convir, por outro lado, que essas particularidades da adolescência permanecem nas atitudes de alunos com idades bem mais avançadas, demonstrando que a adolescência é antes de tudo uma questão de faixa etária psicológica.

Seja como for, o fato é que inúmeros são os casos de alunos que entram nos cursos universitários, em especial nos de filosofia, com enormes dificuldades de escrita e compreensão de texto, resquícios negativos, como sabemos, do nosso precário ensino médio, tanto público quanto privado. Além disso, com as facilidades proporcionadas pela Internet, tornou-se hoje uma grande dificuldade para os professores saberem se os trabalhos apresentados pelos alunos no final de cada semestre são realmente elaborados por eles. E não são poucos os estudantes que conseguem unir esses dois tipos de deficiência, isto é, a de natureza pedagógica com a de natureza ética. Por outro lado, não são exceções os alunos de boa formação colegial que também apelam para o download quando pressionados pelas avaliações. Tais estudantes, mesmo assim, após terem lido dois ou três livros apenas, às vezes muito menos do que isso, de terem conhecido muito superficialmente um ou dois grandes filósofos, como no relato de Cioran, eles se sentem capazes, logo nos primeiros meses do ano letivo, de já arrotarem sentenças categóricas, de decretarem conclusões, de darem respostas definitivas a problemas filosóficos tradicionalmente dificílimos, de imporem suas opiniões como absolutas e, o que é pior, acham-se cultos e preparados o suficiente para tentar destruir reputações de professores e de pessoas que já estudavam filosofia de modo sério e com afinco quando eles ainda nem existiam. Enfim, esses estudantes entorpecidos pela sensação de que são deuses como os filósofos que idolatram, passam a acreditar que sabem tudo, em particular julgar quem sabe alguma coisa e quem não sabe nada. Em outras palavras, desmerecem opiniões divergentes, desqualificam interlocutores e segregam colegas, quase sempre movidos pela precipitação, pela pretensão, pela leviandade, pelo preconceito, bem como pela mentira e pela ignorância. Esses alunos, vítimas dos personagens que criam de si mesmos para enganar aos outros e a si próprios, acabam fazendo do ambiente de estudo um lugar de disputas vãs em torno de bagatelas, implicâncias e rabugices, além de passarela para egos doentes e carentes que precisam se impor para serem notados, e assim superar suas frustrações e até invejas.

De onde se segue que os malefícios do pedantismo têm uma dupla conseqüência, em especial nos ambientes filosóficos. Do ponto de vista social, geram um clima de antipatia, hostilidade e de disputa nada saudável entre os colegas de estudo, o que acaba por minar a possibilidade de um trabalho de pesquisa integrado, solidário e bastante profícuo. Já do ponto de vista individual, o estudante de filosofia pedante, iludido com a falsa imagem que alimenta de si mesmo e dominado pela necessidade de se auto-afirmar, cria resistências ao diálogo, à comunhão de idéias e, por conseguinte, compromete o seu próprio aprimoramento intelectual e filosófico na medida em que se fecha, se chafurda e se intoxica com os dogmas da sua postura estagnante.

Associado a essa doença infantil que atinge alguns dos nossos graduandos em filosofia está o culto aos títulos acadêmicos. Ser mestre ou doutor, orientando do professor beltrano ou sicrano, estes passam a ser critérios para eles hierarquizarem e selecionarem as pessoas com as quais deverão conviver na academia. Trata-se, no fundo, de um fascínio pelo ouro de tolo. Mas essa estirpe de aluno, cega pelo preconceito e pela estreiteza da sua doença infantil, para se sentir ainda mais superior faz desses títulos e das bolsas de financiamento à pesquisa a eles acopladas, suas razões existenciais. Para obter tais títulos e assim ascenderem numa falsa hierarquia, estabelecem as mais sórdidas estratégias de relacionamento, sendo a principal delas bajular pessoas célebres do meio filosófico até conseguirem finalmente ser adotadas por elas. Tal prática rasteira, que torna o ambiente acadêmico injusto e insuportável, é conhecida como “carreirismo”.

Em suma, o pedantismo filosófico e as suas conseqüências deveriam ser tratados como um problema ético importante, e isso logo no seu nascedouro, isto é, na graduação em filosofia. Não se trata aqui de propor uma reflexão tendo por base o nada modesto “só sei que nada sei” socrático tampouco o radical e de certo modo anti-socrático “nem sei se nada sei” de Metrodoro de Quio. Paradoxalmente, o problema merece uma abordagem menos metafísica e mais prática por parte dos professores em sala de aula. Isso significa pelos menos o seguinte: 1) desmistificar a filosofia e a razão derrubando-as do altar no qual foram colocadas pela história da filosofia tradicional, aquela de ranço escolástico e religioso que faz de Sócrates, Platão e Aristóteles os “verdadeiros filósofos” e dos sofistas, cirenaicos, cínicos e outros, “filósofos menores” ou até antifilósofos; 2) humanizar as doutrinas e os filósofos, ou seja, mostrá-los não como revelações sobrenaturais e super-homens, mas como realidades humanas demasiado humanas; 3) desmantelar as hierarquias promovidas pelos títulos acadêmicos, pois, como sabemos, mestres, doutores e pós-doutores são antes de tudo atestados de especializações aprofundadas e não certificados de conhecedores ou donos da verdade, uma vez que em filosofia somos todos eternos estudantes; 4) promover em vez da disputa aniquiladora, da formação de panelinhas em sala de aula e da concorrência darwinista entre os alunos, um trabalho mais de conjunto, no espírito da construção sincera e desinteressada da reflexão em oposição à postura de vencer debates a todo custo em benefício do ego e à custa desse esforço coletivo . Em uma palavra, é preciso tornar o ambiente das turmas das graduações em filosofia mais agradável e leve, isto é, curadas e imunes ao pedantismo, à megalomania e aos seus desdobramentos. Quem sabe assim a filosofia mostra-se menos carrancuda e esnobe e mais simpática e acolhedora.

(Texto publicado em 2007, na edição de número 14 da revista Filosofia, Ciência & Vida, páginas 74 e 75).
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