- É evidente que deve haver alguma espécie de disciplina nas escolas, mas como exercê-la?
É fato que fizeram experiências na Inglaterra e noutros países onde as escolas não tinham disciplina de espécie alguma; permitia-se às crianças fazer o que bem entendiam, sem serem nunca estorvadas. Essas escolas não ignoram, naturalmente, que as crianças necessitam de alguma espécie de disciplina, no sentido de orientação: não com rigorosos deveres e proibições, mas disciplina consistente em alguma espécie de advertência, sugestão ou alusão, a fim de mostrar as dificuldades. Essa espécie de disciplina, que de fato é uma orientação, é necessária.
A dificuldade surge quando a disciplina consiste apenas em submeter a criança a um determinado padrão de ação, pela compulsão, pela intimidação. O caráter dessa criança, naturalmente, se deforma, sua mente se perverte, por causa da disciplina, por causa dos muitos tabus e restrições que tem de observar; cresce, assim, a criança, como aconteceu com a maioria de nós, medrosa e com um sentimento de inferioridade.
Quando a disciplina põe a criança à força num determinado molde, ela não pode, naturalmente, tornar-se inteligente mas, sim, um mero produto da disciplina; e como pode essa criança ser viva, criadora, e por conseguinte tornar-se um homem "integrado", inteligente? É mera máquina de funcionamento uniforme e eficiente, uma máquina sem inteligência humana.
Assim, a questão da disciplina constitui um problema muito complexo, porquanto pensamos que sem disciplina na vida, cometeremos excessos e nos tornaremos excessivamente sensuais. É este o único problema com que de fato nos preocupamos: como não nos tornarmos excessivamente sensuais. Você pode ser desregrado em todos os outros sentidos — ambicionar posição, ser ganancioso, violento, enfim, fazer qualquer coisa, contanto que vos mantenhais dentro de certos limites, com relação ao sexo. É muito estranho, vocês não acham?
É muito estranho que nenhuma religião se oponha verdadeiramente à exploração, à ganância, à inveja, e todas se interessam pelo ato sexual, todas manifestam um zelo terrível com relação à moral sexual. É muito singular a grande preocupação das religiões organizadas com relação a essa moral, enquanto as outras coisas podem ter livre expansão .
É fácil perceber por que as religiões organizadas põem seu principal interesse na moralidade sexual. Elas não cuidam do problema da exploração, porque as religiões organizadas dependem da sociedade e dela vivem, e não ousam por isso atacar a raiz e a base dessa sociedade; por essa razão, preferem manobrar com a moral sexual.
Embora costumemos a falar de disciplina, o que entendemos por essa palavra? Quando vocês tem uma classe de cem alunos, necessitaram de disciplina, do contrário será um caos completo. Mas, se vocês tivessem cinco ou seis alunos em cada classe, com uma instrutora inteligente e de coração afetuoso, capaz de compreensão, estou certo de que não haveria necessidade de disciplina; ela haveria de compreender cada criança e ajudá-la pela maneira desejada.
A disciplina se torna necessária nas escolas, quando há um mestre para cem alunos e alunas — aí, não há dúvida nenhuma que é necessário ser mais rigoroso. Mas essa disciplina nunca produzirá um ser humano inteligente. E a maioria de nós é simpatizante dos movimentos em massa, das grandes escolas com milhares de alunos e alunas; não nos interessa a inteligência criadora, e por isso construímos escolas colossais, com frequencias descomunais. Numa das universidades há, se não me engano, 45.000 estudantes. O que fazer quando se tem de educar todo o mundo, numa escola tão vasta? Em tais circunstâncias, naturalmente, é imprescindível a disciplina.
Não sou contrário à educação geral; seria estupidez minha dizer que sou. Sou pela educação adequada, correta, a que traz inteligência; e isso se realiza, não pela educação em massa, mas somente pelo dispensar a cada criança a necessária atenção, estudando-lhes as dificuldades, as idiossincrasias, tendências, capacidades, velando por ela com afeição, com inteligência. Só então há possibilidade de se criar uma nova sociedade.
Conta-se um caso curioso — um bispo que lia a Bíblia para os analfabetos dos mares do Sul, que ficavam encantados com as narrativas. Maravilhado com o fato, julgou ele que seria interessante voltar à América, angariar dinheiro e fundar escolas em todas as ilhas dos Mares do Sul. Assim o fez: angariou muito dinheiro na América, voltou às ilhas e ensinou o povo a ler. E o resultado foi que deram para ler publicaçõesc ômicas, o Saturday Evening Post, Look, e outras revistas excitantes e sugestivas! É exatamente o que estamos fazendo!
Outro fato extraordinário é que, quanto mais o povo lê, tanto menos rebeldia há. Vocês já refletiram sobre quanto veneramos a palavra impressa? Se o governo emite uma ordem ou dá uma comunicação, em letra de forma, nós a aceitamos tal e qual, nunca a colocamos em dúvida. A palavra impressa tornou-se sagrada. Quanto mais se ensina o povo, tanto menor a possibilidade de revolução, — o que não significa que eu seja contrário a que se ensine o povo a ler. Mas cumpre perceber os perigos que isso implica.
Os governos controlam o povo, dominam-lhe a mente e o coração por meio de astuta propaganda. Isso está acontecendo não apenas nos países totalitários, mas no mundo inteiro. O jornal tomou o lugar do pensamento, os cabeçalhos tomaram o lugar da verdadeira cultura e compreensão.
A dificuldade, por conseguinte, é que na atual estrutura da sociedade, a disciplina se tornou um fator importante, porque desejamos educar um grande número de crianças ao mesmo tempo e o mais rapidamente possível. Educá-las para que? Para serem funcionários de banco ou eficientes super-vendedores, capitalistas ou comissários. Quando uma pessoa é um super-homem de alguma espécie, um super-governador, ou um parlamentar muito sutil no debate, qual o seu mérito? É provavelmente uma pessoa muito inteligente, recheada de fatos.
Ora, qualquer um pode acumular fatos; mas nós somos entes humanos e não máquinas de ajuntar fatos, autômatos objetos da rotina. Mas, vocês não tem interesse; e não fazem coisa alguma no sentido de modificar radicalmente o sistema educativo; e, nessas condições, ele continuará a arrastar a sua existência até que venha a revolução monstruosa, que será apenas outro substituto, com controle muito mais rigoroso, uma vez que os totalitários sabem muito bem moldar as mentes e os corações do povo, — aprenderam o jeito de o fazer.
Essa é a desgraça, essa é a nossa lamentável fraqueza: desejamos que outros façam as alterações, as reformas, desejamos que outros edifiquem por nós. Ouvimos e permanecemos inativos; e quando a revolução obtém sucesso e outros indivíduos edificaram uma nova estrutura, e há todas as garantias, então nos solidarizamos. Por certo, essa não é uma mentalidade inteligente, criadora: a nossa mente, em tal caso, só está em busca de segurança, sob forma diferente. A busca de segurança é um processo estúpido. Para vocês se sentirem seguros, psicologicamente, vocês precisam de disciplina, e a disciplina garante o resultado — por ela os entes humanos são convertidos em rotineiros ocupantes de cargos: funcionários de bancos, comissários, reis ou primeiros-ministros. Sem dúvida, esta é a mais alta expressão da estupidez, porque então os seres humanos são simples máquinas.
Vejam o perigo da disciplina: o perigo é que a disciplina se torna mais importante do que o ente humano; o padrão de pensamento, o padrão de ação torna-se muito mais importante do que os indivíduos que a eles são ajustados. Continuará a existir a disciplina, inevitavelmente, enquanto o coração estiver vazio, porque ela é, então, um substituto da afeição. Como somos em geral áridos, vazios, queremos disciplina. Um coração afetuoso, um ente humano rico, "integrado", é livre, não tem disciplina.
A liberdade não vem por meio da disciplina, não precisamos nos submeter a disciplina alguma, para sermos livres. A liberdade e a inteligência começam muito perto e não longe de nós; e esta é a razão por que, para chegarmos longe, precisamos começar inteligentemente, partindo de nós mesmos.
Krishnamurti - Paz no Coração