Andando pelas ruas, fui impactado pela visão de um
andarilho, um mendigo em andrajos, dormindo no meio do passeio, no meio da calçada.
Cena comum em uma metrópole. Um velho cachorro, com feridas espalhadas pela
cabeça e pelo corpo, dormia junto a ele. O mendigo – por temer que lhe roubassem
o cachorro, creio – tinha uma das pernas sobre o animal. Só não fotografei aquela
cena pelo celular porque considerei uma violação àquele momento de retiro, àquele
instante de descanso. O mendigo, nem a esta simples privacidade, tinha direito.
Poderia se inferir desta cena, facilmente, a seguinte
conclusão: como um ser humano pode cair tanto?
Sem querer romancear a severa realidade dos fatos, fui
envolvido em uma consideração incomum: conclusões precipitadas, advindas de sugestões
condicionantes, tendem a nos manter na crosta, nos rudimentos de uma crosta
grosseira sem profundidade alguma.
Daquela deplorável cena de um corpo humano e de um animal
dormindo juntos no passeio público também se pode deduzir a Unidade e a queda
do conceito de queda da dignidade humana.
Quem consegue se apoderar do sentimento de ser um só,
mesmo com um animal feito o cachorro, mesmo maltrapilho, está apto a comungar
na Unicidade.
Tal aptidão, pelos indícios demonstrados no cotidiano
moderno, é algo em franca decadência. Quão mais digno e honrado é aquele ‘farrapo
humano’ em unidade com seu ‘cão perebento’ do que qualquer outro cidadão comum?
O abismo de quem é maior: do mendigo em andrajos ou do indivíduo que recebe boa
instrução, tem boa moradia, veste-se bem e tem boa alimentação, no entanto,
opta por praticar um individualismo doloso da mais rasa intimidade com seu
semelhante?
Eis uma habilidade que, procurada, não pode ser
encontrada. É uma habilidade que vem ao nosso encontro... instala-se... e pronto!
Tão somente isto.
Uma vez instalada, tal aptidão nos apraz com um escudo
inviolável, um escudo dentro do qual matar ou morrer se igualam a comer ou
respirar; ou seja, são processos naturais.
(Ressalva: por favor, evitem inferências com toda e
qualquer doutrina fundamentalista, pelas quais nenhuma simpatia trago comigo).
Desde que o natural não seja violado, o provimento ao
natural é certo e infalível, assim como são certas e infalíveis as mudanças de estações no planeta Terra devidas à sua trajetória orbital. Presto, aqui, uma homenagem à honrada
estirpe dos Samurais cujo ato de matar ou morrer, em obediência ao soberano,
continha a mesma suavidade do ato natural de respirar.
Porém, a coletividade convertida em manada – pois há os
que se recusam a seguirem a manada – tenta, com insistência espartana, violar a
natureza em suas mais belas manifestações. E, sendo assim, também, tenta violar
a natureza humana, o humano natural.
Violam ao reino mineral, ao reino vegetal, ao reino
animal e, inconsequentemente, ao reino hominal. Violam ao soberano de cada um
destes reinos violando, assim, ao Soberano dos soberanos.
Aos que tiveram a coragem de tirarem sua viola do saco,
fiéis à orquestração de uma sinfonia própria, hauriram o benefício de afinarem o
seu instrumento com notas musicais melodiosamente encantadoras, dentro do diapasão
inviolável daquele fiel escudeiro: a unicidade.
Em retribuição à magnânima honradez e respeito
demonstrados em relação a todos os reinos recebem, sobejamente, o direito ao
ingresso no Reino Virginal em virtude de conservarem a virgindade nos seus
ideais fraternos, apesar dos andrajos usados para cobrir o corpo, apesar das
supostas violações contra a virgindade do próprio corpo.
Mãe, minha Mãe Soberana, Mãe de todos nós, nossa Mãe
Natureza, ouso erguer a Vós o meu clamor profano, pois pressinto próximo o dia
em que os edifícios construídos pelo homem abissal ruirão em decorrência exclusiva
do extremado cultivo deste abismo, desta diáspora a que muitos se deixaram
enredar pelo descrédito consciente em relação ao poder da natureza, em relação ao
Vosso Poder; por – deliberadamente – desacreditarem no poder de suas próprias naturezas
irmãs!
LibaN RaaCh