Aviso aos navegantes

Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

1 de dezembro de 2011

No eu está todo problema

Quando disserdes eu, acrescentai imediatamente em vossos corações, “Deus seja o meu refúgio contra a malignidade do eu e meu guia para a bem-aventurança do eu”, pois nessa palavra, tão pequena embora, está encerrada a alma de todas as outras palavras.

Descerrai-a e imediatamente vossa boca será perfumada e vossa língua se cobrirá de mel; de vossas palavras ressumarão as delícias da Vida. Deixai-a fechada, e repugnante será o vosso hálito e amarga a vossa língua; cada uma de vossas palavras destilará o pus da Morte.

Eu, ó monges, é a Palavra Criadora. E a não ser que vos apodereis da força mágica; e a menos que sejais donos do poder dos mestres, gemereis quando deveríeis cantar; estaríeis em guerra, quando deveríeis estar em paz; estareis encerrados no cárcere das trevas, quando deveríeis estar pairando numa atmosfera de luz.

Vosso eu nada mais é do que a vossa consciência de Ser, silenciosa e incorpórea, que se faz sonora e corpórea.

É o inaudível que se torna audível; o invisível que se torna visível; a visão que vos permite ver o que se não vê; a audição que vos permite ouvir o que se não ouve. 

Ainda tendes presos os vossos olhos e os vossos ouvidos. E se não virdes com os vossos olhos e não ouvirdes com os vossos ouvidos, nada vereis e nada ouvireis.

Basta que penseis eu, e um mar de pensamentos se agitará dentro de vossas cabeças. Esse mar é uma criação de vosso eu, que é, ao mesmo tempo, o pensador e o pensamento. Se tendes pensamentos que apunhalam, que mordem ou despedaçam, ficai certos de que somente o eu-em-vós lhes deu o punhal, os dentes ou as garras.

Mirdad deseja que saibais; aquele que pode dar pode também retirar.

Basta sentirdes eu para abrirdes uma fonte de sentimentos em vossos corações.

Essa fonte é uma criação de vosso eu, o qual é, ao mesmo tempo, aquilo que sente e aquilo que é sentido. Se existem urzes espinhosas em vossos corações, foi unicamente o eu-em-vós que lá as plantou.

Mirdad quer que saibais que quem pode facilmente plantar, também pode, facilmente, arrancar.

Pelo mero pronunciar eu, trazeis à vida uma multidão de palavras, cada qual símbolo de uma coisa; cada coisa, símbolo de um mundo; cada mundo, parte de um universo.

Esse universo é criação de vosso eu, o qual é, ao mesmo tempo, o criador e a criatura. Se houver alguns duendes em vosso universo, podeis estar certos de que o vosso eu foi quem os criou.

Mirdad quer que saibais que quem cria também pode destruir.

Tal como o criador, assim é a criatura. Poderá alguém criar algo superior a si mesmo? Ou criar algo inferior a si próprio? Só a si mesmo — nem mais, nem menos — o criador cria.

O eu é uma fonte da qual tudo flui e à qual tudo reflui. Tal qual a fonte, assim é a correnteza.

O eu é uma varinha mágica. Não pode, porém, a varinha fazer surgir coisa alguma que não esteja no mágico. Tal como é o mágico, assim é aquilo que a sua varinha produz.

Conforme for a vossa Consciência, assim será o vosso eu. Conforme for o vosso eu, assim será o vosso mundo. Se o vosso eu for claro e tiver um significado definido, vosso mundo será claro e terá um significado definido; então vossas palavras jamais serão confusas e as vossas obras jamais serão ninhos de dor. Se o vosso eu for obscuro e incerto, vosso mundo será obscuro e incerto; e vossas palavras serão emaranhadas e confusas e as vossas obras serão ninho de dor.

Se o vosso eu for constante e paciente, vosso mundo será constante e paciente; sereis mais poderosos do que o Tempo e mais espaçosos do que o Espaço.

Se o vosso eu for passageiro e inconstante, vosso mundo será passageiro e inconstante; e vós sereis uma baforada de fumaça que o sol em pouco irá desfazer.

Se o vosso eu for uno, vosso mundo será uno; e vós tereis a paz eterna com todas as hostes celestiais e os habitantes da Terra. Se o vosso eu for múltiplo, vosso mundo será múltiplo; e estareis em perpétua guerra convosco mesmo e com todas as criaturas dos domínios imensuráveis de Deus.

O eu é o centro de vossa vida, de onde irradiam as coisas que constituem a totalidade de vosso mundo e para o qual elas convergem. Se ele for firme, o vosso mundo será firme; e não haverá forças em cima ou em baixo que vos possam desviar para a direita ou para a esquerda. Se for instável, vosso mundo será instável; e sereis uma folha indefesa colhida pelo terrível redemoinho do vento.

Alerta! Eis que o vosso mundo é firme, não há dúvida, somente, porém, na instabilidade. E o vosso mundo é certo, unicamente na incerteza. E é constante o vosso mundo, mas tão só na inconstância. E o vosso mundo é uno, mas somente na multiplicidade. 

O vosso é um mundo em que os berços se tornam sepulcros e os sepulcros se tornam berços; em que os dias devoram as noites e as noites vomitam dias; de paz declarando guerra e de guerra implorando paz; em que os sorrisos flutuam sobre as lágrimas e as lágrimas brilham nos sorrisos.

O vosso é um mundo em constante trabalho de parto, em que a parteira é a Morte.

O vosso mundo é um mundo de crivos e peneiras, no qual não há dois crivos ou duas peneiras iguais. E estais sempre sofrendo a tentar passar pelo crivo o que por ele não passa e a lutar peneirando o que se não pode peneirar.

O vosso é um mundo dividido contra si mesmo porque o vosso eu é assim dividido.

O vosso é um mundo de barreiras e de cercas porque o vosso eu é uma dessas barreiras e cercas. Ele põe uma cerca para que aquilo que lhe é estranho não entre e estabelece outra para aquilo que lhe é afim não saia. No entanto, o que está para fora da cerca, se põe a passar para o lado de dentro e o que está dentro se põe a passar para o lado de fora, pois, sendo ambos prole da mesma mãe — e também o vosso eu — não podem ser separados.

E vós, em vez de vos regozijardes com a sua feliz união, tornais a cingir-vos para o infrutífero trabalho de separar o inseparável. Em vez de estabelecerdes a divisão de vosso eu, despedaçais a vossa vida na vã tentativa de fazer uma cunha com a qual possais separar aquilo que pensais ser o vosso eu, daquilo que julgais não ser o vosso eu. Eis porque as palavras dos homens são embebidas de veneno. Eis porque são os seus dias ébrios de tristeza. Eis porque são as suas noites tão atormentadas pela dor.

Livro de Midard


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