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Este blog é apenas uma voz que clama no deserto deste mundo dolorosamente atribulado; há outros e em muitos países. Sua mensagem é simples, porém sutil. É uma espécie de flecha literária lançada ao acaso, mas é guiada por mãos superiores às nossas. À você cabe saber separar o joio do trigo...

22 de março de 2012

Deus

DEUS
Krishnamurti

Interlocutor P: Krishnaji, em um nível, seu ensinamento é muito materialista, porque se nega a aceitar o que não tenha um ponto de referência. Está baseado em “o que é”. Você inclusive foi tão longe a ponto de dizer que a consciência são as células cerebrais, e que não há outra coisa. E o pensamento é matéria, e nada a mais.

Agora, nestes termos, qual é sua atitude em relação a Deus?

Krishnamurti: Eu não sei o que você entende por materialista, e o que entende por Deus.

P: Você disse que o pensamento é matéria, que as próprias células cerebrais são a consciência. Pois bem, estas coisas são materiais, mensuráveis, e nesse sentido sua posição seria parte da posição materialista, dentro da tradição dos ‘Locayatas”. Que lugar que ocupa Deus nos termos de seu ensinamento? Deus é matéria?

Krishnamurti: Você entende claramente a palavra “material”?

P: Material é aquilo que pode medir-se.

F: Não há tal coisa como o material, ‘P’.

P: O cérebro é matéria.

F: Não, é energia. Tudo é energia, mas essa energia não é observável. Você pode ver somente os efeitos dessa energia, aos quais chama “matéria”. Os efeitos da energia aparecem como matéria.

D: Quando ela disse matéria, provavelmente quer significar energia. Energia e matéria são conversíveis entre si, mas continuam sendo mensuráveis.

Krishnamurti: Ou seja, você disse que a matéria é energia e que a energia é matéria. Não se pode separá-las e dizer: isto é energia pura e isto é matéria pura.

D: O material é a expressão ou aparência da energia.

F: O que chamamos matéria não é senão energia. Não é nada mais que a energia apreendida pelos sentidos da percepção. Não há tal coisa como matéria. É apenas uma maneira de falar.

P: Veja, Krishnaji, se investigarmos qualquer aspecto de seu ensinamento, ele está baseado no observável. Os instrumentos para ouvir, para ver, estão dentro do campo da captação sensorial. Ainda quando você fala de não nomear, o que é observável o é através dos instrumentos do ver, do escutar. Os instrumentos dos sentidos são os únicos que temos para observar.

Krishnamurti: Nós conhecemos o ver sensório, o ouvir, o tocar sensório, e o intelecto que é parte de toda a estrutura. Qual é a pergunta?

P: Nesse sentido, o ensinamento é materialista em oposição ao metafísico. Sua posição é uma posição materialista.

F: Se quisermos nos ater aos fatos, o único instrumento que temos é o cérebro. Agora, é o cérebro tudo, ou é um instrumento nas mãos de alguma outra coisa? Se você diz que só o cérebro existe, essa seria uma posição materialista. Se diz que o instrumento é material, então o ensinamento não é materialista.

P: A posição tântrica e a da antiga alquimia são, num sentido, similares a posição de Krishnaji. Tudo há de ser observado. Nada deve ser aceito, que não haja sido visto com os olhos daquele que vê. Vendo isto, agora pergunto: qual é sua visão de Deus? Eu sinto que esta é uma pergunta legítima.

F: Você pode explicar o que é Deus?

Krishnamurti: O que você entende por Deus? Estivemos explicando a energia e a matéria, e agora você pergunta o que entendemos por Deus. Eu nunca emprego a palavra “Deus” para indicar algo que não seja Deus. O que o pensamento inventou não é Deus. Se ele foi inventado pelo pensamento, segue estando dentro do campo do tempo, dentro do campo do material.

P: O pensamento diz que eu não posso ir mais longe.

Krishnamurti: Mais ele pode inventar a Deus devido a que não pode ir mais longe. O pensamento conhece suas limitações, por isso trata de inventar o ilimitado, ao que chama Deus. A situação é essa.

P: Quando o pensamento vê suas limitações, ainda é consciente de uma existência que está mais além dele mesmo.

Krishnamurti: O pensamento a inventou. Só é possível ir mais além quando o pensamento toca seu fim.

P: Ver as limitações do pensamento não é conhecer o pensamento.

Krishnamurti: Portanto, devemos investigar o pensamento e não Deus.

D: Quando o pensamento vê sua própria limitação, praticamente a desmascara.

Krishnamurti: O pensamento se dá conta de que é limitado, ou é o pensador quem se dá conta de que o pensamento é limitado? Veja o ponto. É o pensador – que é o produto do pensamento – o que se dá conta disto?

P: Porque você traça esta distinção?

Krishnamurti: O pensamento criou o pensador. Se o pensamento não existisse, não haveria um pensador. É o pensador, que observando as limitações diz: "eu sou limitado”, ou o pensamento mesmo se dá conta de suas limitações, o que implica duas posições diferentes? Sejamos claros em tudo isto. Estamos explorando. Aí estão os dois, o pensamento e o pensador; o pensador, observando o pensamento, vê mediante o raciocínio – que é material, que é energia – que a energia é limitada. O pensador pensa isto no reino do pensamento.

D: Quando o pensador disse que o pensamento é limitado, ambos – pensamento e pensador – se tornam sinais de interrogação.

Krishnamurti: Não, ainda não. O pensamento é memória, é a resposta do conhecimento. O pensamento produziu esta coisa chamada o pensador. E pensador se separa então do pensamento; ao menos pensa que está separado do pensamento. O pensador, olhando o intelecto, a capacidade de raciocínio, vê que esta é muito, muito limitada. Portanto o pensador condena a razão; o pensador diz que o pensamento é muito limitado, o que é condenar. Então, diz que deve haver algo mais que o pensamento, algo fora deste campo limitado. Isso é o que fazemos. Agora tomamos as coisas tais como são. É o pensador o que pensa que o pensamento é limitado, ou o pensamento mesmo se dá conta de que é limitado? Não sei se você vê a diferença.

F: O pensamento é anterior ao pensador.

P: O pensamento pode terminar, mas como pode o pensamento sentir que é limitado?

Krishnamurti: Esse é o ponto. O pensador vê que é limitado, ou é o pensamento o que diz: “é impossível ir mais além”? Vê o problema?

F: Por que você separa o pensador do pensamento? Há muitos pensamentos, entre os quais o pensador é também outro pensamento. O pensador é o que guia, o que ajuda, o que censura, ele é a coisa que mais domina.

Krishnamurti: O pensamento passou por tudo isto, e estabeleceu um centro do qual opera o observador; e o observador, olhando o pensamento, diz que o pensamento é limitado.

D: De fato, ele só pode dizer: “não sei”.

Krishnamurti: Ele não diz isso. Você está introduzindo um fato não observável. Em primeiro lugar, o pensamento, que é a resposta do conhecimento, não se deu conta de que é muito limitado. O que fez com o fim de ter segurança, é reunir vários pensamentos que se converteram no observador, o pensador, o experimentador. Então formulamos a pergunta: o pensador se dá conta de que é limitado. Ou é o próprio pensamento que se dá conta disso? São coisas completamente diferentes.

F: Nós só conhecemos um estado onde o pensamento pensa pensamentos.

Krishnamurti: Isso é tudo o que conhecemos. Portanto, o pensador diz invariavelmente que devemos ir mais além do pensamento, e assim pergunta: “Alguém pode anular a mente? Existe Deus?”

F: Você está outorgando existência ao pensador em lugar do pensamento.

Krishnamurti: O pensador está modificando, acrescentando. O pensador não é uma entidade permanente, nem tão pouco o é o pensamento. Mas o pensador acomoda, modifica todo o tempo; isso é importante, eu posso estar equivocado. É importante descobrir se o pensador vê que é limitado ou se é o pensamento como idéia – sendo a idéia, pensamento organizado –, o que pensa que é limitado.

Bem, quem é que diz? Se o pensador diz que é limitado, então o pensador diz que deve haver algo mais; diz que deve haver Deus, que deve haver algo mais além do pensar, correto? Se o pensamento mesmo se dá conta de que não pode ir mais além de sua prisão, mais além de suas arraigadas células cerebrais – as células cerebrais como o material, como a raiz do pensar – se o pensamento se dá conta disso, então, o que ocorre?

P: Veja, senhor, essa é toda a questão. Se em seu ensinamento você não passasse deste ponto, eu compreenderia. Se você deixasse as coisas aí, neste ponto em que o próprio pensamento vê isto, em que as próprias células cerebrais o vêm, e permanecesse nesse ponto, então haveria uma total coerência e lógica; mas você sempre está se movendo, vai mais além disso e aí não é possível usar palavra alguma. Portanto, chame-o como queira, mas foi introduzido o sentimento de Deus.

Krishnamurti: Não aceitarei a palavra “Deus”.

P: Por meio da razão, da lógica, você nos conduz até um ponto. Mas não o deixa aí.

Krishnamurti: Certamente que não.

P: Esse é o verdadeiro paradoxo.

Krishnamurti: Recuso aceitá-lo como um paradoxo.

F: A matéria de algo e seu significado não são intercambiáveis. ‘P’ está misturando ambas as coisas.

Krishnamurti: O que ela disse é bastante simples: “O pensador e o pensamento: nós podemos ver toda a lógica dele – o que você disse – mas você não o deixa aí. Segue adiante”.

P: Penetra numa abstração. Eu digo que o pensamento e o pensador são essencialmente uma mesma coisa mas que o homem o separou para sua própria proteção, permanência, segurança. Nós perguntamos: o pensador que pensa pensamentos é limitado e por isso postula algo que esteja mais além porque deve ter segurança? Ou é o pensamento mesmo o que diz que qualquer que seja o movimento, por sutil, óbvio ou racional que seja, o pensamento segue sendo limitado? Mas Krishnamurti vai mais além do que isso e penetra em abstrações.

Krishnamurti: Eu me dou conta de que o pensador e o pensamento são muito, muito limitados, e não me detenho aí. Se me detivesse, isso seria uma filosofia altamente materialista. A isso chegaram muitos intelectuais no oriente e ocidente. Mas eles estão sempre atados, e estando atados se estendem, mas permanecem amarrados a um poste constituído por suas experiências, suas crenças.

Agora, o que ocorre se posso responder a pergunta acerca de se o próprio pensamento se dá conta de sua limitações? O pensamento sabendo que ele é energia, que é memória, sofrimento... percebe então que qualquer movimento do pensar é consciência e que sem o conteúdo não há consciência. O que ocorre então? Isso é observável ou não? Eu não invento a Deus.

P: Eu não digo isso. Nunca disse que você inventa Deus. Digo que até chegar a esse ponto sua posição é materialista, racional, lógica; em seguida, subitamente, você introduz outro elemento.

Krishnamurti: Não. Veja. O pensamento mesmo se dá conta – não o pensador que pensa, que é incapaz de dar-se conta e que portanto, postula uma supra-consciência, um “eu” mais elevado, Deus ou o que for –, é o próprio pensamento que adverte que qualquer movimento que faça está dentro do campo do tempo. Então, o que ocorre? O pensamento se cala por um momento – este é um fato observável, comprovável. O silêncio que advém não é o resultado da disciplina. O que ocorre, então?

P: Senhor, deixe-me fazer uma pergunta. Nesse estado prossegue o registro de todos os ruídos. O que é a máquina que registra?

Krishnamurti: O cérebro.

P: O cérebro é o material. Por tanto, esse registro continua.

Krishnamurti: Continua todo o tempo, tanto quando se é consciente como quando se é inconsciente dele.

P: Você pode não nomeá-lo, mas o sentido da existência prossegue.

Krishnamurti: Não. Você emprega a palavra “existência”, mas é o registro que prossegue. Aqui quero estabelecer a diferença.

P: Não nos afastemos. Não é que toda a existência se apague, como sucederia se o pensamento terminasse.

Krishnamurti: Ao contrário.

P: Existência: o sentido da existência, “ser”.

Krishnamurti: A vida prossegue mas sem o “eu” como o observador. A vida continua, o registro continua, a memória continua, mas o “eu” criado pelo pensamento, o “eu” que é o conteúdo da consciência, esse “eu” desaparece; obviamente, porque esse “eu” é limitado. Portanto, o pensamento – como o “eu” – diz: “eu sou limitado”. Isso não significa que o corpo não continue, mas o centro que é a atividade do “si mesmo” como o “eu”, isso não continua. E novamente ele é lógico, porque o pensamento diz: “sou limitado, não criarei o ‘eu’ que é uma limitação adicional”. O pensamento se dá conta disso, e ele desaparece.

P: Foi dito que o pensamento criando ao “eu”, é a limitação...

Krishnamurti: O pensamento cria o “eu” e o “eu” se dá conta de que é limitado; assim, o “eu” deixa de ser.

F: Quando isto ocorre, por que há de ser nomeado como “pensamento”?

Krishnamurti: Eu não estou nomeando nada. Me dou conta de que o pensamento é a resposta do passado. O "eu" está constituído pela soma de diferentes pensamentos: estes criaram o “eu” que é o passado; o “eu” é o passado, o “eu” projeta o futuro.

Bem, todo o fenômeno é um assunto muito insignificante. Isso é tudo. Qual é então a pergunta seguinte?

F: Que tem Deus a ver com este estado de desesperança?

Krishnamurti: Não é um estado de desesperança. Ao contrário, você introduziu a qualidade de desesperança porque seu pensamento disse que não pode ir mais além de si mesmo e por tanto, está desesperado. O pensamento se dá conta de que qualquer movimento que faça, segue estando dentro do campo do tempo, quer o chame desesperação, realização, prazer, temor.

P: O dar-se conta das limitações é então, um estado de desesperação.

Krishnamurti: Não, você introduz a desesperação. Eu apenas digo que a desesperação é parte do pensamento. A esperança é parte do pensamento, e esse pensamento diz que qualquer que seja o movimento que eu faça, seja desesperação, prazer, temor, apego ou desapego, é um movimento do pensar. Quando o pensamento se dá conta disso, se detém. Agora, sigamos adiante.

P: Quero perguntar-lhes algo. Você disse que a existência continua sem o “eu”. Quem é que segue adiante?

Krishnamurti: Nós nos afastamos da palavra “Deus”.

P: Se meu emprego da palavra “Deus” está muito no campo do pensamento, então a descarto. Por tanto, digo que se o pensamento – como o “eu” – cessou, qual é o instrumento da investigação?

Krishnamurti: Chegamos a um ponto em que não há movimento do pensar. Ao investigar dentro de si mesmo tão profundamente como estamos fazendo agora, tão logicamente, o pensamento se deteve. Agora pergunta: qual é o novo fator que surgiu e que vai investigar? Ou, qual é o novo instrumento da investigação? Já não é o velho instrumento, de acordo? O intelecto, sua agudeza de pensamento, a qualidade mesma do pensamento, a objetividade, o pensamento que criou tremenda confusão, tudo isso foi negado.

P: O pensamento é a palavra e o significado. Se na consciência há um movimento em que não existem a palavra e o significado, há alguma outra coisa que está operando. O que é essa coisa?

Krishnamurti: Dissemos que o pensamento é o passado, o pensamento é a palavra, o pensamento é o significado, o pensamento é o resultado do sofrimento. E o pensamento diz que eu estive tratando de investigar e que minha investigação me levou a ver minhas próprias limitações. Qual é, agora, a seguinte pergunta? Que é a investigação, então? Se você vê claramente as limitações, o que é que está sucedendo?

P: Apenas existe o ver.

Krishnamurti: Não. O ver é visual, e o ver é sensório, depende da palavra, do significado.

P: Depois do que dissemos, só está operando o ver.

Krishnamurti: Quero ser claro. Você disse que está operando aí o ver com sua percepção sensória. Havíamos ido mais além disso.

P: Quando você emprega a palavra “ver”, esse é um estado em que estão funcionando todos os instrumentos?

Krishnamurti: Sim, categoricamente.

P: Portanto, se só funciona um instrumento de cada vez, então este se encontra preso ao pensamento. Quando há um ver e um não escutar, esse ver está preso ao pensamento. Mas quando todos os instrumentos sensoriais estão funcionando, então, nada há suscetível de ficar preso. Essa é a única coisa que pode ser conhecida. Essa é a existência. De outro modo, o que haveria é morte.

Krishnamurti: Estamos de acordo. Qual é então a pergunta seguinte? Que é, então, a percepção? Que lugar encontra a investigação aí? O que há para ser investigado aí, o que há para explorar? Correto? O que vocês têm a dizer? Ficaram todos em silêncio?

P: Quando o pensamento cessa, não há nada mais para investigar.

Krishnamurti: Quando o pensamento cessa, que mais há para investigar, então? Quem é o investigador? E qual é o resultado da investigação? Qual é a pergunta agora? O que há para ser investigado? Ou, quem ou o que é o instrumento que investiga?

P: A investigação sempre foi considerada como um movimento até um ponto.

Krishnamurti: É um movimento para adiante?

P: Estamos tentando investigar a Deus, a verdade, mas como o pensamento cessou, não existe um ponto para o qual possa haver um movimento.

Krishnamurti: Vá devagar, não afirme nada categoricamente. Tudo quando você pode dizer é que não há movimento, não há um movimento para frente. O movimento para frente implica pensamento e tempo. Isso é tudo quanto estou tratando de averiguar. Quando você de fato nega isso, quando nega o movimento externo e o interno, o que é que ocorre?

Agora começa uma investigação de uma classe completamente diferente. Em primeiro lugar, a mente, o cérebro, se dá conta de que necessita ordem, segurança, que necessita estar a salvo para funcionar de forma sã, feliz, fácil. Essa é a sua máxima exigência; agora o cérebro se dá conta de que qualquer movimento que provenha dele mesmo está no campo do tempo e portanto, no campo do pensamento. Então, há algum movimento? Ou existe uma classe completamente diferente de movimento, qualitativamente diferente, que não tem relação com o tempo, com o processo, com o movimento para frente ou para trás? Agora nossa pergunta é: existe algum outro movimento? Há algo que não esteja relacionado com o tempo?

Qualquer movimento, onde o cérebro esteja envolvido, se encontra no campo do tempo – seja esse movimento externo ou interno. Vejo isso. O cérebro se dá conta de que ainda quando possa pensar que se estende infinitamente, continua sendo muito pequeno.

Bem, existe um movimento que não esteja relacionado com o pensar? Esta pergunta é feita pelo cérebro, não alguma entidade superior. O cérebro se dá conta que qualquer movimento no tempo é dor. Portanto, se abstém naturalmente de todo movimento. Então se pergunta se há algum outro movimento que ele realmente não conheça, que ele nunca tenha experimentado.

Isso significa que a questão deve retroceder à questão da energia. Há energia humana e energia cósmica. A energia humana sempre foi considerada como separada, limitada, incompleta dentro de seu campo limitado. Agora a batalha terminou, entende o que quero dizer? Vê? Sempre foi considerado que o movimento da energia estava dentro do campo limitado, e separado da energia cósmica, universal. Agora o pensamento se deu conta de sua limitação e em conseqüência, a energia humana se converteu em algo completamente diferente. A divisão – o cósmico e o humano – é criada pelo pensamento. A divisão cessa e entrou em jogo outro fator. Para uma mente que não se encontra centrada em si mesma, a divisão não existe. O que há para investigar então? Ou, qual é o instrumento da investigação? Há uma investigação, mas não é a investigação a que estou acostumado, o exercício do intelecto, o raciocínio e tudo isto. E esta investigação não é intuição. O cérebro se dá conta de que nele não há divisão alguma. Por tanto, não está dividido como algo cósmico, humano, sexual, científico. A energia não tem divisões.

O que ocorre então? Havíamos começado perguntando se o pensamento é materialista. O pensamento é material porque o cérebro é matéria. O pensamento é o resultado do material; pode ser abstrato, mas é o resultado do material. Evidentemente, é assim. São poucos os que foram mais além.

F: O significado do corpo é a consciência. Literalmente, qual é o significado da existência?

Krishnamurti: Qual é o significado de uma habitação? O vazio, porque o vazio está criado pelas quatro paredes, e neste vazio eu posso colocar uma cadeira e usar a habitação.

P: A habitação tem um significado porque ‘P’ vive nela.

Krishnamurti: Vive nela com seus móveis, seus temores, esperanças, disputas.

P: Você disse que a consciência é o conteúdo, mas eu pergunto mais. Qual é o significado, não a descrição?

Krishnamurti: ‘F’ quer dizer o significado de minha existência. Nenhum, em absoluto...

F: Não é questão de que se queira ter um significado? Qual é o significado de Krishnamurti? O ser pode ser negado? Então, está aniquilado. Dentro está o indivíduo, o censor, a existência, a consciência, o corpo, e há tanto mais – a alma abstrata; finalmente, uma alma ao redor da qual tudo tropeça. Isso pode ser negado?

Krishnamurti: A alma é o “eu”.

P: Aí é onde enraíza a dificuldade. A pergunta de ‘F’ tem validade porque a consciência de si mesmo é a coisa mais difícil de negar. Se é tentado negar o “ego” e o “si mesmo”, nunca conseguirá faze-lo. Mas se procede tal como acabamos de fazer, isso é tudo quanto se necessita.

F: Qual é o significado de tudo isto? Por que deve terminar o “eu”? O significado do átomo é o organismo, o significado do organismo é a consciência, por que deve ele deter-se aí?

Krishnamurti: Não se detém aí. Se detém aí apenas quando o pensamento se dá conta de suas limitações. Retrocedamos. Que instrumento é que vai investigar? – instrumento no qual não haja separação, no qual não exista o investigador e o investigado. Eu vejo que o pensamento realmente não tem sentido. Tem apenas dentro do seu pequeno campo. Agora ele pergunta – não como o descobridor que descobre algo –, o que é que há para descobrir.

Que movimento é este que não é nem interno nem externo? É por acaso a morte? É a completa negação de tudo? O que ocorre então? O que é a investigação? Quando o pensamento termina, nesse fato incluímos tudo; incluímos o significado, a consciência, o conteúdo da consciência, o êxito, o fracasso. Tudo está dentro desse campo. Quando isso termina, o que ocorre então? O cérebro existe, existe o ato de registrar – a parte que está registrando – o registro continua. Tem que continuar; de outro modo, o cérebro enlouqueceria. Mas existe a totalidade, que se encontra completamente quieta. O pensamento já não está envolvido. O pensamento não penetra para nada neste campo. O pensamento intervém num campo muito pequeno do cérebro.

P: É um fato que usamos uma ínfima parte de nosso cérebro.

Krishnamurti: Há a outra parte.

F: Não há razão alguma para supormos que o remanescente do cérebro que não usamos pode se tornar algo mais que outra parte da consciência.

Krishnamurti: Não, observe-o bem.

F: Ainda do ponto de vista biológico, você não está certo. A dimensão do cérebro que se pode usar determina a dimensão da consciência. Se você usa mais, a consciência será maior.

Krishnamurti: O velho cérebro é muito limitado. O cérebro inteiro é o novo que não foi empregado. A qualidade total do cérebro é nova; o pensamento, que é limitado, funciona em um campo limitado. O velho cérebro não está ativo porque o limitado deixou de ser.

P: Então, você disse que se é visto uma pequena parte do cérebro como limitada, a limitação termina; é assim?

Krishnamurti: Não, a limitação continua.

P: Mas devido a que ela não abarca a totalidade do cérebro nem põe limites a si mesma, o resto não utilizado do cérebro se torna operável. Então, esta é outra vez uma posição totalmente materialista.

Krishnamurti: De acordo. Continue, avance mais.

P: Isso é tudo. Não há mais o que discutir.

F: Eu tenho uma objeção a fazer. Ainda que o cérebro inteiro seja usado plenamente, ele continuará sendo a consciência, uma consciência tremendamente ampliada.

Krishnamurti: Dependendo se existe um centro.

D: Se há um centro, então você não está usando o outro.

F: Nos temos estado operando apenas dentro do limitado. Agora, se você se move no outro, como sabe que esta consciência não tem uma direção localizada em um centro?

Krishnamurti: A localização ocorre quando o pensamento opera como dor, desespero, êxito, quando o pensamento funciona como o “eu”. Quando o “eu” se encontra em silêncio, onde está a consciência?

F: Depois disso, tudo se torna conjecturas. Você presume que o único fator que pode projetar o centro é um desengano, uma ferida. O pensamento é limitado. Portanto, se projeta a si mesmo. Por que a localização deve depender da limitação?

Krishnamurti: A localização em um centro tem lugar quando está funcionando o pensamento.

P: Se o pensamento cessa com sua palavra e significação, qualquer coisa que esteja operando então, não é reconhecível como palavra e significado.

F: Você estreita o campo. Eu ainda questiono legitimamente que a frustração seja o único ponto de localização.

Krishnamurti: Eu incluí tudo, não apenas a frustração mas também tudo quanto se encontra no campo do tempo. Agora vejo que as células cerebrais tem estado operando em um campo muito pequeno, e que esse pequeno campo com sua energia limitada criou todo o dano. O velho cérebro se aquieta. O que temos chamado quietude, é a limitação que se aquieta. O ruído dele terminou e esse é o silêncio da limitação. Quando o pensamento se dá conta disso, então o cérebro mesmo, todo o cérebro, se aquieta.

P: No entanto, registra.

Krishnamurti: Certamente. O ruído prossegue.

P: A existência continua.

Krishnamurti: A existência sem nenhuma continuidade. O que acontece então? Todo o cérebro se aquieta, não a parte limitada.

F: Para nós é a mesma coisa.

P: Se não se conhece o outro e o outro não é manejável, o que para nós se aquieta é só a limitação.

Krishnamurti: Portanto, essa quietude não é quietude.

P: Você está introduzindo algo novo...

D: O que o faz dizer que nos não empregamos todo o cérebro?

F: Eu digo que todo o meu cérebro está funcionando, mas que não sou consciente disso porque encerro a mim mesmo dentro do campo limitado.

Krishnamurti: Por favor, primeiro detenha o movimento do pensar, depois veja o que ocorre.

D: Quando o pensamento se detém, as coisas ocorrem por si mesmas; é necessário então inquirir no que sucede?

P: Quero formular aqui uma pergunta. Você disse que o cessar da limitação do “eu” como pensamento não é o silêncio.

Krishnamurti: Essa é a beleza disso.

P: Deixe-me captar o sentimento disso. Tenha a bondade de repeti-lo.

Krishnamurti: Disse que quando o pensamento com suas limitações diz que está em silêncio, não está em silêncio. O silêncio tem lugar quando toda a condição do cérebro está silenciosa; a coisa total, não apenas uma parte dela.

F: Por que deve ficar em silêncio todo o cérebro?

Krishnamurti: O cérebro total sempre esteve silencioso. O que eu chamei de silêncio é o cessar do “eu”, do pensamento que tagarela constantemente. O constante tagarelar é pensamento. Esse tagarelar se deteve completamente. Quando o tagarelar chega ao seu fim, há uma sensação de silêncio, mas isso não é silêncio. O silêncio tem lugar quando a mente total, o cérebro – ainda que registrando – está completamente quieto, porque a energia está quieta. Ela pode estalar explosivamente, mas a base da energia é quietude.

Veja, a paixão existe apenas quando há movimento de dor. Compreendeu o que disse? A dor é energia. Quando há dor, existe o movimento de escapar através de compreender essa dor, de suprimi-la. Mas quando não há movimento algum na dor, se produz um estalo na paixão. A mesma coisa sucede quando não há movimento – externo ou interno –, quando não há movimento do silêncio que o “eu” criou por si mesmo com sua limitação, para alcançar algo além. Quando há absoluto silêncio, silêncio total e portanto, não há movimento de nenhum gênero, quando tudo está completamente quieto, há uma classe completamente diferente de explosão que é...

P: ...Deus.

Krishnamurti: Me nego a usar a palavra “Deus”, mas este estado não é uma invenção. Não é uma coisa produzida pelo pensamento astuto, porque o pensamento se encontra plenamente imóvel. Por isso é importante explorar o pensamento, e não o outro.

Bombaim
9 de fevereiro de 1971

do livro: Tradicion Y Revolucion
Editora Edhasa

tradução: MST-Jina

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